Games

Game Guide

Red Dead Redemption: Por que a história só pode ser contada de trás pra frente

, updated , 0Comment Regular Solid icon0Comment iconComment iconComment iconComment icon

As escolhas narrativas da série Red Dead Redemption apresentam reflexão sobre o peso da memória em uma era de decadência, e não haveria outra maneira de contar essa história se não de trás para frente

Edit Article

A franquia Red Dead Redemption abre uma reflexão sobre o fim de uma era. É um jogo sobre liberdade e a perda dela, sobre homens que viveram para um mundo que não existia mais, e sobre como a mudança social não pergunta se você está pronto para ela. Curiosamente, a forma como essa história é contada rompe a ideia tradicional de narrativa sequencial. Em vez de seguir uma linha do tempo linear, a Rockstar optou por revelar seu enredo principal de trás para frente.

O primeiro jogo, lançado em 2010, se passa em 1911, nos últimos suspiros da era dos pistoleiros, quando a industrialização, as ferrovias e a lei federal já dominavam o oeste americano. O segundo, Red Dead Redemption 2, lançado oito anos depois, volta para 1899, anos antes, quando ainda havia espaço, mesmo que em decadência, para foras-da-lei como Dutch van der Linde e sua gangue.

Essa decisão criativa não é apenas uma inversão de datas. É uma maneira de nos fazer sentir a tragédia inevitável dessa narrativa. Ao jogar Red Dead Redemption antes de RDR2, vivenciamos o desfecho de personagens e eventos antes mesmo de conhecer sua origem. Sabemos como tudo vai acabar. E é justamente esse conhecimento prévio que torna cada diálogo, cada traição e cada escolha no segundo jogo ainda mais dolorosos.

Neste artigo, vamos entender por que essa estrutura invertida não apenas funciona, mas é a única forma possível de contar essa história.

Image content of the Website

O Oeste morre antes de nascer

Na maioria das histórias de faroeste, o foco está no auge da era dos pistoleiros: duelos ao amanhecer, cidades sem lei e heróis solitários que moldam seu próprio destino. Em Red Dead Redemption, a Rockstar decide começar pelo contrário: no fim de tudo. Quando conhecemos John Marston em 1911, o Velho Oeste já não existe como a lenda nos fez acreditar. As armas ainda disparam, mas o espírito de liberdade já foi esmagado por telégrafos, trens e leis federais.

Essa ambientação já entrega um peso um pouco estranho, quase melancólico, de que não estamos aqui para construir um império ou dominar territórios, mas para testemunhar o que restou de um mundo que está morrendo. John, ex-membro de uma gangue, não luta mais por riqueza ou fama, mas pela própria sobrevivência em um cenário onde pistoleiros são fósseis vivos.

Quando a Rockstar decide que Red Dead Redemption 2 será uma prequela, isso não é para nos mostrar o "início" da era, mas para nos revelar como o fim começou. O jogo de 1899 não é o nascimento de um mito, e sim o primeiro estágio da sua decomposição.

Conhecer o fim antes do começo muda tudo

A estrutura narrativa invertida cria uma experiência única para o jogador: nós conhecemos o destino de John antes de conhecer a história completa da gangue Van der Linde. Quando jogamos RDR2, cada conversa com Dutch, Bill Williamson ou Javier Escuella carrega uma tensão oculta, sabemos que, no futuro, todos estarão em lados opostos, que a lealdade vai se despedaçar e que o sangue vai ser derramado.

Essa escolha também aprofunda nossa relação com Arthur Morgan, protagonista de RDR2. Nunca o vemos no primeiro jogo, e isso já é um sinal de que algo trágico aconteceu. Enquanto jogamos, carregamos a sombra dessa ausência. E quando o destino de Arthur se cumpre, entendemos por que ele não estava em RDR1.

Se a história fosse contada na ordem cronológica tradicional, a carga emocional seria menor. Jogar primeiro RDR2 e depois RDR1 faria com que a morte de Arthur fosse um momento forte, mas sem o impacto adicional de sabermos desde o início que tudo aquilo levaria a uma tragédia. Ao inverter a ordem, a Rockstar transforma o segundo jogo em uma espécie de carta de despedida.

O peso da inevitabilidade

O que torna a narrativa dessa franquia tão poderosa é o sentimento do inevitável. Não importa o que façamos como jogadores, ajudar personagens, tomar decisões mais honrosas ou desonrosas, o destino da gangue já está escrito.

Em RDR1, John não tem escolha: o governo o chantageia para caçar e matar seus antigos companheiros. O jogador, já emocionalmente envolvido, é forçado a destruir o que resta de sua própria história. Esse conflito moral é avassalador.

Quando voltamos a 1899 em RDR2, percebemos que todos os eventos que levam ao primeiro jogo são uma sequência de erros, ganância e ilusões de grandeza. O jogador vê Dutch, que antes era carismático e idealista, lentamente se corromper. Vê a gangue rachar de dentro para fora. E, por mais que tentemos salvar algo, sabemos que o desfecho é inevitável.

Esse é o tipo de tragédia que só funciona plenamente quando já conhecemos o fim.

Image content of the Website

A metáfora da morte do Oeste

A estrutura de trás para frente da franquia também serve como metáfora para o próprio Velho Oeste. Historicamente, a "era dos pistoleiros" durou pouco do final da Guerra Civil americana até a virada do século XX. A industrialização, as linhas de trem e a expansão do governo federal transformaram rapidamente o território. O que antes era sinônimo de aventura e anarquia tornou-se lei e ordem.

Ao começar no fim, a Rockstar nos força a encarar a morte do Oeste antes de sua glória. É como visitar um cemitério antes de conhecer os vivos que estão enterrados ali. Quando voltamos no tempo para RDR2, não é para assistir à ascensão dos pistoleiros, mas para vê-los tentando sobreviver enquanto o mundo já prepara sua lápide.

Essa perspectiva cria um peso histórico nos videogames, tornando a franquia um estudo sobre o fim de uma era.

A escolha de protagonistas reflete a ordem inversa

John Marston e Arthur Morgan representam momentos distintos da mesma tragédia.

John, em 1911, é um homem tentando deixar o passado para trás, reconstruir a vida para a família, mas sendo puxado de volta para a violência pela força implacável do governo. Ele é o produto final de uma era moribunda.

Arthur, em 1899, é um homem ainda no auge físico, vivendo o dia a dia da vida fora-da-lei, mas já consciente de que o mundo está mudando rápido demais para ele. Ele é o retrato da luta contra o inevitável.

Se contássemos a história na ordem cronológica, conheceríamos primeiro Arthur, depois John. Mas perderíamos a intensidade de ver John como um eco distante do que Arthur foi e perderíamos a oportunidade de perceber, ao jogar RDR2, o quanto os dois compartilham a mesma sensação de derrota, ainda que em tempos diferentes.

Construindo mitologia pela desconstrução

Uma das maiores forças desta franquia é como ela constrói sua mitologia. No primeiro jogo, a gangue Van der Linde é uma lenda maldita. Sabemos que eles foram grandes, ousados, perigosos. Mas não sabemos como tudo acabou.

Quando RDR2 chega, essa lenda começa a se desfazer diante dos nossos olhos. Não há glamour no dia a dia da gangue, há fome, fuga, paranoia e promessas quebradas. O mito é desconstruído, e isso é mais impactante porque o jogador já conhecia o "fim do livro".

Se a franquia fosse linear, a lenda se construiria naturalmente, e a queda seria previsível. Ao contar de trás para frente, a queda vem primeiro, e o auge é mostrado já com o gosto amargo da derrota.

Image content of the Website

O impacto emocional da repetição

Há uma rima narrativa entre os dois jogos: ambos terminam com o protagonista sendo sacrificado para que outra pessoa tenha uma chance de viver. Em RDR2, Arthur se sacrifica para dar tempo a John escapar. Em RDR1, John se sacrifica para salvar sua família.

Esse "eco emocional" só é percebido porque a ordem de lançamento é invertida. Quando vemos Arthur proteger John, sabemos que, anos depois, John fará o mesmo por Abigail e Jack. Essa repetição cria uma sensação de ciclo trágico que, narrado de forma linear, perderia muito de sua força.

Uma franquia sobre memória, não sobre cronologia

No fim, Red Dead Redemption é sobre memória. Não importa a ordem cronológica, importa o impacto que cada momento tem quando sabemos o que vem depois.

Ao escolher contar de trás para frente, a Rockstar transforma o jogador em uma testemunha privilegiada, alguém que já viu o epílogo antes do prólogo. E isso muda como interpretamos cada cena, cada decisão e cada diálogo.

É um lembrete de que, às vezes, conhecer o fim primeiro nos faz valorizar ainda mais o caminho.

Possibilidades para um Red Dead Redemption 3

Se seguirmos o raciocínio de “voltar no tempo”, o próximo capítulo poderia se situar por volta de 1880-1890, período ainda mais caótico do Oeste, antes das primeiras fissuras na gangue. Isso abriria um leque de possibilidades narrativas:

- A juventude de Dutch van der Linde. Ver Dutch no auge de seu carisma e idealismo, quando ainda acreditava plenamente em sua filosofia, seria fascinante. Seria também uma chance de entender melhor como ele se tornou o homem paranoico e obsessivo que vemos em RDR2.

- A história de Hosea Matthews. O cofundador da gangue é uma das figuras mais intrigantes da franquia. Em RDR2, Hosea é o mentor que mantém Dutch no chão, mas sabemos pouco sobre seu passado como vigarista. Um jogo centrado nele poderia misturar tiroteios e golpes elaborados.

- Os primórdios de John Marston. Embora parte da juventude de John já tenha sido mostrada em diálogos, ver seu recrutamento e primeiros trabalhos na gangue criaria um elo direto com RDR1. Porém, o desafio aqui seria não repetir demais o que já conhecemos.

- Novos protagonistas: Assim como Arthur Morgan não existia no primeiro jogo, a Rockstar poderia criar um protagonista inédito, que interage com figuras conhecidas, mas vive sua própria trajetória. Isso manteria a sensação de frescor enquanto expande a mitologia.

Image content of the Website

Conclusão: o único jeito possível

Se Red Dead Redemption tivesse seguido a ordem tradicional, começando com a história de Arthur, depois passando para a de John, teríamos perdido muito do peso trágico que define a franquia. A melancolia, a inevitabilidade e a sensação de estar preso a um destino imutável são construídas justamente porque sabemos o que vai acontecer antes de entendermos como chegamos lá.

Essa é uma história que só funciona plenamente contada de trás para frente. É como ler o último capítulo de um livro antes do primeiro — e descobrir que isso não estraga a história, mas a torna ainda mais dolorosa e inesquecível.