A mudança na Indústria dos Jogos Para Sempre
A história dos videogames é marcada por revoluções criativas, avanços tecnológicos e, ocasionalmente, por intensos debates sociais. Entre todos os momentos que marcaram esse meio, poucos foram tão decisivos quanto o início dos anos 1990, quando Mortal Kombat e Night Trap se tornaram o centro de uma discussão nacional nos Estados Unidos e, por consequência, transformaram para sempre a maneira como jogos eram entendidos, classificados e regulados ao redor do mundo.
Esses dois títulos, cada um à sua maneira, provocaram uma reação política e midiática que culminou na criação de sistemas oficiais de classificação etária, dando origem ao ESRB na América do Norte e ajudando a construir o caminho para o PEGI na Europa anos depois. Tais eventos redefiniram a relação entre criadores, consumidores, governos e a própria cultura dos videogames. Para entender por que Mortal Kombat e Night Trap tiveram impacto tão enorme, é necessário revisitar sua chegada ao mercado, a escalada de preocupação pública e o momento crucial em que o governo norte-americano decidiu levar os videogames ao tribunal.

O impacto inicial de Mortal Kombat e a ascensão dos “jogos violentos”
Lançado em 1992, Mortal Kombat de arcade surgiu como uma resposta mais realista e agressiva ao estilo de luta colorido e fantasioso que dominava os arcades, especialmente com Street Fighter II. A grande novidade era o uso de atores digitalizados, que davam aos personagens um aspecto quase “real”. Era algo inédito, e isso imediatamente gerou fascínio entre jovens jogadores.
Mas havia outra característica que rapidamente chamou a atenção do público e da mídia: a violência explícita. Golpes brutais, sangue jorrando da tela e, claro, os icônicos Fatalities, que permitiam ao jogador finalizar o oponente com execuções exageradas, arrancando cabeças, dilacerando corpos e queimando-os vivos.
O jogo se tornou um fenômeno instantâneo, mas também um alvo.
Jornais começaram a publicar artigos alarmistas, programas de TV exibiam os Fatalities como “prova” da degeneração moral promovida pelos videogames e grupos de pais manifestavam preocupação com a exposição de crianças àquele conteúdo. A controvérsia cresceu ainda mais com o lançamento das versões domésticas para Mega Drive e Super Nintendo em 1993, pois agora o jogo violento deixava os fliperamas e entrava nos lares.
Enquanto a versão de Super Nintendo removia o sangue, a versão do Mega Drive mantinha quase toda a violência original, acessível por meio do icônico código ABACABB. Foi essa diferença que provocou indignação suficiente para atrair a atenção de políticos.
Night Trap: o jogo “amaldiçoado” que virou símbolo moral
Ao mesmo tempo, outro jogo estava em ascensão: Night Trap, lançado em 1992 para Sega CD. Ele era um FMV (Full Motion Video), usando atores reais em cenas gravadas, simulando uma espécie de filme interativo. O jogador acompanhava em tempo real uma casa invadida por criaturas vampíricas chamadas “Augers”, alternando entre câmeras de vigilância e acionando armadilhas para proteger um grupo de jovens.
Embora pareça inocente quando analisado hoje, Night Trap foi rapidamente rotulado como um “jogo que incentivava violência contra mulheres”. A cena mais controversa, extensivamente mostrada fora de contexto nas audiências, envolvia uma garota sendo capturada por um dos monstros, mas, na prática, o jogo não exibia violência gráfica.
Entretanto, o simples fato de ser filmado com atores reais e mostrar jovens em camisolas bastou para transformar o jogo em alvo da indignação pública. Quando combinado com o pânico moral gerado por Mortal Kombat, Night Trap se tornou um símbolo perfeito para políticos que buscavam regulamentar os videogames.
O Senado dos Estados Unidos entra na jogada
Em 1993, o senador democrata Joseph Lieberman, acompanhado pelo senador republicano Herb Kohl, iniciou uma campanha nacional pedindo regulamentação federal para jogos eletrônicos. A preocupação central era que títulos como Mortal Kombat e Night Trap estavam sendo consumidos por crianças sem qualquer tipo de controle ou aviso aos pais.
A pressão ganhou força suficiente para que, em dezembro de 1993, o Congresso norte-americano convocasse duas audiências públicas, transmitidas ao vivo, com representantes da indústria dos videogames, especialistas em psicologia infantil, organizações de pais e políticos.

As audiências: videogames “no banco dos réus”
Durante as sessões, trechos de Mortal Kombat e Night Trap foram apresentados como evidência do suposto conteúdo prejudicial ao qual crianças tinham acesso. Políticos mostravam, repetidamente, vídeos de Fatalities e cenas de Night Trap, muitas vezes tiradas de contexto, para provocar choque público.
A indústria dos videogames estava desunida. Na época, era dividida em três grandes setores: fabricantes de consoles (Nintendo e Sega), a recém-fundada 3DO e produtores de jogos de PC. Sem organização conjunta, cada empresa tentava se defender isoladamente.
A Nintendo, por exemplo, acusou a Sega de permitir jogos mais violentos, já que o Super Nintendo havia censurado Mortal Kombat. A Sega defendia seu sistema de classificação interno para o Sega CD, mas os políticos argumentaram que esse sistema era insuficiente e pouco conhecido do público.
O clima foi tenso. Os senadores afirmavam que, se a indústria não criasse uma forma de autorregulação eficaz, o governo implementaria uma regulamentação federal obrigatória. Isso pressionou as empresas a se unirem rapidamente.
A criação do ESRB
Com medo de intervenção governamental, as principais companhias originalmente rivais decidiram se unir para criar a Entertainment Software Rating Board (ESRB), órgão independente que estabeleceria classificações etárias padronizadas e obrigatórias para jogos comercializados nos Estados Unidos e Canadá.
Lançado oficialmente em 1994, o ESRB foi estruturado para funcionar de maneira semelhante ao sistema da MPAA para filmes. Ele categorizava os jogos em faixas etárias e incluía descritores de conteúdo, como: violência, sangue, linguagem pesada, temas adultos, nudez e humor sugestivo.
A criação do ESRB foi um divisor de águas. Permitiu que os videogames se autorregulassem sem intervenção governamental e possibilitou que jogos mais maduros existissem sem risco de censura total. Assim, títulos como Mortal Kombat II e, anos depois, Grand Theft Auto, puderam ser lançados sem restrições federais.

Night Trap é temporariamente retirado do mercado
Apesar da criação do ESRB, Night Trap continuou sendo duramente criticado. Em resposta à pressão, a Sega retirou o jogo das lojas por alguns meses. Ironicamente, isso só aumentou seu status de cult.
Anos depois, em entrevistas, o senador Lieberman reconheceu que Night Trap não era tão ofensivo quanto parecia, prova de que o debate foi amplificado pela atmosfera moralista da época.
O caminho até o PEGI
Enquanto os Estados Unidos criavam o ESRB, outros países acompanhavam atentamente a polêmica. Na década de 1990, muitos países europeus já contavam com sistemas individuais de classificação para filmes, mas não existia um padrão unificado para videogames. Assim, jogos eram avaliados diferentemente em cada nação, criando confusão para consumidores e distribuidores.
A crescente globalização do mercado de jogos, somada à influência direta dos acontecimentos nos Estados Unidos, levou a União Europeia a buscar uma solução. Em 2003, surgiu o PEGI (Pan European Game Information), um sistema unificado de classificação para toda a Europa, inspirado parcialmente pelo ESRB, mas adaptado às particularidades culturais europeias.
O PEGI utiliza uma combinação de idades (3, 7, 12, 16, 18) e descrições de conteúdo: violência, discriminação, drogas, sexo, medo e apostas, garantindo clareza e consistência para pais e consumidores. Assim como o ESRB, o sistema europeu permitiu que jogos com temas mais adultos, como Resident Evil ou God of War, circulassem legalmente desde que devidamente identificados.

Como esses eventos mudaram a indústria para sempre
O impacto desses acontecimentos foi profundo e duradouro, afetando múltiplos aspectos da produção e distribuição de jogos, como o fim da ambiguidade na venda de jogos. Antes do ESRB e do PEGI, pais não tinham informações claras sobre o conteúdo de um jogo. Agora, qualquer produto vem com rótulos detalhados, ajudando famílias a tomar decisões mais conscientes.
A regulamentação não censurou os jogos, ao contrário, o amadurecimento da indústria abriu portas para títulos voltados ao público adulto sem medo de banimento. Obras como Silent Hill 2, The Last of Us, Witcher 3 e Doom (2016) só existem porque o sistema de classificação protege a liberdade criativa. Também foi o estopim para o surgimento da discussão sobre responsabilidade social: a indústria passou a debater temas como limites da violência, representação de minorias e sexualização, buscando equilibrar liberdade artística e sensibilidade cultural.
De vilões a pioneiros culturais
Mortal Kombat e Night Trap jamais foram criados para iniciar um debate político, mas acabaram se tornando catalisadores de mudanças essenciais. A polêmica dos anos 1990, vista com os olhos de hoje, parece exagerada. Mas seu impacto foi real e eles entraram para a história como obras que impulsionaram o crescimento cultural da indústria.
O pânico moral que geraram revelou a ausência de regulamentação apropriada e ajudou sistemas que hoje consideramos naturais, e a criação do ESRB e, posteriormente, do PEGI garantiu a liberdade dos desenvolvedores para criar jogos maduros, complexos e artisticamente ousados. Sem esses sistemas, muitas das maiores obras da história dos videogames talvez nunca existissem.











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