De volta à Origem
Toda jornada precisa de um começo. Durante décadas, este permanece como uma experiência memorável no imaginário público. Seja pela glória alcançada, ou pelo seu legado que transcende gerações.
A jornada de hoje começou com a adaptação das empresas e desenvolvedoras em seus primeiros passos na produção de jogos para consoles, mais especificamente para o Famicon da Nintendo, lançado em 1983. Na época, por conta da percepção sobre o gênero e as dificuldades logísticas, o conceito de um jogo com uma história mais longa, como os RPGs, pareciam uma tarefa árdua e complicada demais para os consoles.
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Essa preconcepção mudou com o lançamento de Dragon Quest, publicado pela Enix em 1986. Sua proposta de um RPG designado para um console, com mecânicas mais amigáveis para iniciantes e um sistema inovador no gênero transformaram a obra em um sucesso de vendas e consolidou a marca como referência com o segundo jogo da franquia, lançado menos de um ano depois.
Enquanto o destino dessas duas empresas só se entrelaçaria em 2003, o sucesso do RPG da Enix foi o estopim para dar início ao que se tornaria a maior marca de outra desenvolvedora e publicadora de jogos, a Square.
Em 1987, Hironobu Sakaguchi recebeu autorização para produzir o seu primeiro RPG, Fighting Fantasy - Para evitar conflitos de direitos autorais com uma série de livros de mesmo nome, este título foi renomeado para Final Fantasy, lançado em 18 de dezembro.
O primeiro RPG da Square foi um grande sucesso comercial, e levou ao lançamento de sequências e novos títulos geração após geração, culminando no legado de uma das maiores franquias de jogos eletrônicos de todos os tempos, com 36 anos, 16 jogos principais e dezenas de spin-offs, mais de 180 milhões de cópias vendidas, além de se expandir para outras mídias como filmes, anime, mangás, séries de TV e parcerias com outras marcas.
Neste artigo, após apreciarmos os clássicos em nosso review da coleção Pixel Remaster, voltamos às origens da franquia e avaliamos quais foram os fatores que tornaram do primeiro Final Fantasy, em sua versão original para NES, um grande marco da indústria dos games.
Como Final Fantasy se tornou um sucesso?
Apesar de não se encaixar nos moldes contemporâneos e ser considerado um dos títulos menos famosos da franquia hoje, Final Fantasy apresentou um sucesso significativo de vendas para sua época.
Segundo a Square para a revista Electronic Gaming Monthly, em 1994, o primeiro jogo havia vendido 700 mil cópias na América do Norte, e 600 mil cópias no Japão, sendo um dos principais títulos a solidificar o espaço dos RPGs nos consoles, pavimentando o caminho para aprimorar mecânicas e narrativas que culminariam no sucesso estrondoso de Final Fantasy VII, em 1997.
Alguns pontos-chave foram cruciais para a adaptação do título ao mercado em crescimento após o sucesso de Dragon Quest, de maneira a torná-lo um diferencial quando comparado aos outros jogos da época. Estes foram alguns dos principais elementos que fizeram de Final Fantasy um sucesso:
A Inspiração em Dungeons & Dragons
Dungeons & Dragons é uma série de RPG de mesa produzida pela Tactical Rules Studio em 1974. Hoje, a franquia é uma propriedade da Wizards of the Coast, está em sua quinta edição e possui sua própria série de jogos eletrônicos, como a trilogia de Baldur’s Gate.
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A obra não só deu início ao sistema de RPGs como também popularizou o gênero ao ponto de chegar aos games eletrônicos, servindo de inspiração para diversos títulos no decorrer das décadas, inclusive clássicos que influenciaram o desenvolvimento de Final Fantasy, como Wizardry.
Final Fantasy conta com diversas referências e mecânicas inspiradas em Dungeons & Dragons.
O diferencial de Final Fantasy para outros títulos que o tornou atrativo até para os fãs de D&D foi a maneira como, apesar de recorrer aos livros como inspiração e exaltar a nostalgia e pertencimento do seu público-alvo, o jogo utiliza esses conceitos para criar sua própria história.
O conceito de cristais (esferas no jogo original), guerreiros da luz, naves aéreas e outros se mesclaram com as partes inerentes do clássico RPG de mesa para criar uma aventura que parecesse nova enquanto também exalasse aquele sentimento de “uma campanha de D&D em um jogo de console”, da qual muitos entusiastas ansiavam na época.
Liberdade na Customização de Equipe
Na versão para Famicon e NES, ao iniciar Final Fantasy, o jogador é agraciado com uma breve premissa do enredo e logo é direcionado para uma tela de customização de personagens, onde pode escolher o nome e a classe deles, com seis opções disponíveis: Guerreiro, Ladrão, Faixa Preta, Mago Branco, Mago Preto e Mago Vermelho.
Este foi um dos maiores atrativos de sua época e permanece sendo até hoje. A possibilidade de customizar sua equipe permitia maneiras distintas de jogar e funcionava, em essência, como um medidor de dificuldade.
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Se jogadores quisessem uma experiência mais simples e segura, bastava ter uma equipe com dois ou mais Guerreiros, capazes de suportar ataques mais pesados, acompanhados de um ou dois curandeiros para manter a sobrevivência da equipe. Do contrário, se quisessem uma experiência mais desafiadora, bastava remover os Guerreiros ou curandeiros da equipe, ou tentar composições apenas com magos.
Essa escolha no início do jogo garantia maior autonomia, e até uma pequena mudança no posicionamento da sua equipe ou em uma classe diferente podia alterar bastante o nível de dificuldade e as estratégias necessárias para passar por uma masmorra, ou o quanto de tempo seria investido em ganhar níveis e acumular recursos para vencer o próximo desafio.
Em uma época onde zerar jogos já era uma grande conquista, Final Fantasy agregou diversos métodos de iniciar o jogo e estabeleceu novos desafios entre os fãs, como o famoso White Mage Challenge.
Estética Visual e Trilha Sonora
Além das claras referências e inspirações no design de alguns monstros em D&D, Final Fantasy contou com seus próprios atrativos visuais em sua interface de menus e combate.
Onde outros jogos apostavam em uma visão de primeira pessoa nas batalhas, Final Fantasy permitia ver seus personagens no canto direito da tela executarem animações distintas quando atacavam, conjuravam magia, ou quando estavam feridos. A melhoria de profissão também se destacou nesse aspecto, pois trazia mudanças na aparência dos heróis, como se eles amadurecessem durante a jornada.
Enquanto os cartuchos de Famicon e NES continham uma limitação significativa na sua capacidade de emitir sons, Nobuo Uematsu iniciou seu marco histórico como compositor da franquia desde o primeiro jogo, com algumas canções icônicas que são retrabalhadas e presentes até em títulos mais recentes, como o famoso Prelúdio.
Uma Jornada Desafiadora
Games, no seu conceito original, foram criados para desafiar e entreter.
Hoje, esses dois objetivos se mesclam com narrativas envolventes e traços que tornam dos games um conteúdo próximo do cinematográfico imersivo, além de priorizarem um conceito mais recente, conhecido como Qualidade de Vida - Uma série de elementos e recursos feitos para tornar do jogo mais acessível sem precisar alterar a jogabilidade. A maioria deles são invisíveis e integrados de maneira fluida e natural, como o salvamento automático, muito comum nos títulos modernos.
Em 1987, qualidade de vida era um termo inexistente. Com prazos curtos de lançamentos e equipes bem menores do que as que desenvolvem games hoje (Final Fantasy teve um prazo de dez meses para ser desenvolvido e lançado), muitos recursos não eram planejados ou pensados, além de bugs serem comuns e, muitas vezes, imperceptíveis ao consumidor final caso não se dedicassem em encontrá-los.
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Em seu lançamento original, Final Fantasy era um pesadelo nesse quesito. Além de mágicas que não funcionavam como deveriam, os ataques e magias não tinham um redirecionamento automático e atingiam o “vácuo” onde o inimigo ou aliado costumava estar.
Ele também não tinha pontos de save, sendo necessário usar uma Barraca ou descansar em um vilarejo para salvar. Também não existiam meios de salvar o jogo em uma masmorra, ou seja, se a equipe fosse derrotada nela, o jogador teria de percorrer a masmorra inteira novamente.
O pouco espaço de memória dos cartuchos da época limitava o tamanho do inventário e dificultava até a abertura de baús, os itens nas lojas não tinham descrição e nem demonstravam quais classes podiam usá-los e nem se eram melhores ou piores do que os itens já equipados. As mágicas também não tinham descrições do que elas faziam, e caso uma magia ruim ou errada fosse escolhida, não era possível substituir ou esquecer ela nos três espaços de cada nível.
Não fosse suficiente, desde o primeiro minuto, Final Fantasy nunca te diz o que fazer. A jornada se inicia com os quatro guerreiros da luz próximo ao castelo de Cornelia, ao falar com os NPCs, uma ação totalmente opcional, descobrimos que a princesa do reino foi raptada e, se explorarmos o suficiente, descobrimos também sua localização através do diálogo de outro NPC em um dos cantos do castelo.
Para alguém que não conhece ou nunca jogou esse titulo, a única maneira de entender o que você precisa fazer é pegar as dicas que os NPCs te dão e explorar as regiões acessíveis em busca do próximo objetivo.
O combate também é punitivo e traiçoeiro: algumas vezes, surgem grupos pequenos de inimigos, fáceis de derrotar em uma rodada. Em outras, um grupo de nove monstros inicia uma emboscada e pode abater e/ou envenenar um ou dois membros da equipe antes do primeiro turno começar e para derrotá-los rápido, é necessário usar uma magia mais forte, o que significa ter menos um recurso para usar contra o chefe, pois não existem meios de recuperar os pontos de magia sem descansar.
Essa junção de dificuldade proposta pelos desenvolvedores, limitações do cartucho, bugs e ausência do conceito de qualidade de vida tornava de Final Fantasy uma jornada desafiadora em vários sentidos.
Encontrar uma masmorra significava planejar o quanto de níveis ganhos e itens seriam necessários para atravessá-la, era necessários gerenciar recursos em cada batalha para chegar até o chefe com pontos de magia e vida suficientes para não ser obliterado e precisar recomeçar, e a derrota dele garantia aquela satisfação de ter superado outro grande desafio.
A experiência de passar por uma masmorra no Final Fantasy de NES lembra um jogo do gênero Soulslike, onde o despreparo do jogador é seu fator limitante. Se você falhar, precisará fazer backtracking, ou pode se arriscar mais uma vez na masmorra e torcer para não enfrentar um grupo gigante de inimigos ou ser punido pelo seu descuido enquanto gerencia recursos para ter o suficiente na hora de enfrentar o chefe, sobreviver e sair da masmorra para salvar o jogo com seu progresso recém-adquirido.
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Caso não consiga, será necessário investir algumas horas em enfrentar monstros para ficar mais forte e tentar de novo - essa é parte da essência contemporânea de jogos Soulslike.
Senso Significativo de Conquista
Se as masmorras são seu grande desafio, derrotar um dos quatro demônios e progredir com a história garante a sensação de superar um grande obstáculo e conquistar mais um progresso no jogo. Essa cadência entre progresso e desafio é a base do entretenimento de inúmeros títulos desde a concepção dos games, e Final Fantasy proporciona senso de conquista como parte integral dos seus elementos narrativos.
No começo, seu acesso é limitado a uma pequena porção do mapa composta pela cidade e castelo de Cornelia, onde pode interagir com NPCs, comprar equipamentos, magias, itens e descansar, e a Chaos Shrine, onde Garland lhe aguarda.
Quando Garland é derrotado, o rei de Cornelia reconstrói a ponte que conecta o reino até outra região, desbloqueando mais áreas exploráveis que levam até Pravoka, onde derrotar um grupo de piratas garante acesso ao navio e desbloqueará acesso aos mares e os diversos portos espalhados pela região.
Final Fantasy repete essa fórmula em cada estágio: você precisa fazer X para desbloquear Y para alcançar Z. Para cada progresso, os horizontes do mundo se expandem com novas cidades, magias, equipamentos, monstros e objetivos, mantendo uma experiência empolgante e significativa do início ao fim.
Essa metodologia é um órgão vital da franquia e foi reproduzido em diversos outros títulos, sendo aprimorado conforme os padrões de narrativa e jogabilidade ficaram mais complexos.
A Grande Aventura
Final Fantasy oferece uma trama genérica para os padrões atuais, mas interessante e inovador para o seu tempo, onde a carência de diálogos e personagens marcantes são compensadas pelo senso de “aventura épica” que a jornada de um grupo de aventureiros proporciona desde o começo.
Destaca-se a possibilidade de nomear os quatro Guerreiros da Luz - um aspecto narrativo que perdeu espaço conforme tramas ficaram mais complexas e voice acting se tornou uma tendência, mas exercia um papel fundamental na imersão.
Dar nome aos personagens exercia um senso coletivo. Incluir o nome de amigos, familiares, ou até de personagens da ficção exercitava a imaginação do jogador, e permitia até que um grupo de pessoas jogassem em conjunto em casa, onde cada um ‘comandava’ um dos personagens.
Seu enredo também soa ganancioso para sua época: Final Fantasy começa ao explicar o estado pré-apocalíptico em que o mundo se encontra, e como seu povo acredita em uma profecia onde um grupo de aventureiros carregando cristais os salvará da ruína.
Por intenção ou acaso, o primeiro ato da jornada começa com um objetivo do qual é o cerne de outros jogos famosos da época: salvar uma princesa enquanto confronta o vilão.
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Deste ponto adiante, a trama passeia por características típicas da fantasia medieval conforme os heróis encontram bruxas, elfos, anões, vampiros, sábios, sereias e dragões enquanto exploram um mundo vasto e repleto de mistérios, com cavernas, vulcões e santuários afundados.
Em seu penúltimo arco, Final Fantasy toma uma postura mais ousada com a adição de elementos de ficção cientifica na trama, com robôs e um castelo flutuante cheio de máquinas mortíferas prontas para aniquilar o grupo de heróis - e vai um pouco mais longe ao inserir viagem no tempo em seu arco final.
A explicação por trás do looping temporal é confusa e beira a falta de sentido, mas funciona no que se propõe: tornar da aventura mais épica. Os heróis viajam dois mil anos no passado para confrontar um último inimigo e dar um fim ao ciclo, não sem antes enfrentar os quatro demônios do passado no caminho.
Este nos leva até o último e mais importante aspecto narrativo do jogo: Final Fantasy busca conversar com o jogador. Ele abre espaço para sua imaginação fazer parte do trabalho ao nomear os personagens, escolher as profissões, explorar o mundo, conversar com NPCs e enfrentar monstros.
Os “protagonistas silenciosos” colocam no interlocutor a responsabilidade por interagir e explorar este universo, e na tela de encerramento, ele agradece ao jogador por restaurar a luz no mundo. Afinal, foi através de suas decisões que os Guerreiros da Luz conseguiram cumprir com o seu destino.
Por mais simplificado que sua proposta fosse, Final Fantasy se encerra com uma gloriosa conquista, da qual um jovem de frente para sua TV de tubo e videogame pode se orgulhar após passar dias enfrentando cada desafio do título.
Nintendo Power
Tal como em Final Fantasy VII, a influência e poder da publicidade e do trabalho midiático no sucesso desta obra não deve ser subestimada.
Em 1990, Final Fantasy foi traduzido e lançado para a América do Norte. Além do retrabalho artístico para se assemelhar com a fantasia medieval ocidental, a Nintendo publicou um extensivo guia de 80 páginas para o jogo, com um passo a passo de cada estágio divido em capítulos, além de informações sobre magias, tesouros, inimigos, masmorras e outros detalhes.
Essas revistas influenciavam bastante os padrões de consumo de jogos na América do Norte, e certamente foram um ponto determinante nas vendas de Final Fantasy no ocidente, além de auxiliarem no progresso eficiente da jornada para jovens que vivenciavam um RPG eletrônico pela primeira vez, e poupar o tempo de jogadores mais experientes.
Rejogabilidade
Tratando-se de uma aventura que levava dias ou até semanas para terminar, Final Fantasy não se encaixava nos moldes de jogos possíveis de se zerar muitas vezes em um curto período. No entanto, quando comparado aos outros títulos de RPG, ele oferecia uma diversidade bem maior com seu sistema de composição de equipes, com até 126 combinações possíveis.
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Como cada classe oferece uma função distinta com seu próprio equilíbrio de qualidades e defeitos, alterar um ou dois membros já incrementava a dificuldade e demandava maior planejamento para passar pelas masmorras e enfrentar monstros e chefes. Enquanto repetir a mesma história com combinações distintas parece tedioso hoje, agregar esse nível de rejogabilidade em 1987 significava garantir mais aproveitamento do seu produto.
Vale a pena jogar o primeiro Final Fantasy em 2024?
Depende.
Final Fantasy não acompanha os padrões de qualidade narrativos ou de jogabilidade contemporâneos, nem nas suas versões mais recentes. Se você deseja conhecer a franquia ou é um fã dela, o primeiro jogo oferece mais que o suficiente para entreter e dar o mesmo senso de progresso e conquista que oferecia em 1987.
Exceto se for para experimentar o jogo da maneira como ele foi concebida, jamais recomendaria a versão de NES de Final Fantasy para alguém: ela é lenta e sua usabilidade é contraintuitivo em diversos aspectos. Ao invés, recomendo experimentar a versão Pixel Remaster, com todas as mecânicas e funcionalidades do título original, mas sem os bugs e com excelentes melhorias na qualidade de vida.
E caso você queira se aprofundar neste universo, Stranger of Paradise: Final Fantasy Origin é um spin-off não-canônico que utiliza o mesmo mundo, temáticas e personagens do primeiro jogo da franquia para contar sua história baseada nos eventos da obra original. Ele foi lançado em 2022 e está disponível para PlayStation 5, PlayStation 4, Xbox One, Xbox Series e PC.
Conclusão
A jornada em 1987 deixou seu legado e perpassou gerações, e entender como Final Fantasy começou e onde as suas origens se encontram com os títulos contemporâneos nos mais variados aspectos nos traz uma nova perspectiva sobre o escopo entre respeito às raízes e inovação que a série busca em cada jogo.
Sem Cornelia, não haveria outros reinos incríveis como Alexandria. Sem as classes e protagonistas silenciosos, não teríamos personagens, heróis e heroínas tão marcantes na franquia hoje, e sem toda a construção de mundo elementar do primeiro Final Fantasy, a fantasia jamais teria se expandido e criado novos universos apaixonantes, jogo após jogo.
Obrigado pela leitura!
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