Faz quase um mês desde o lançamento de Final Fantasy VII Rebirth, considerado como a maior carta de amor que o legado da série e do FFVII original poderiam receber. Desde então, a comunidade tem girado em torno de debates nas mídias sociais sobre alguns dos pontos mais controversos do jogo e até em comparações diretas com o título anterior, Final Fantasy XVI.
Comparações são um ciclo natural de quando games de uma mesma série são lançados para o mesmo console. Final Fantasy XV foi amplamente comparado com Final Fantasy VII Remake, e FFVII Remake também é comparado com FFVII Rebirth e FFXV - é parte de debates comuns nas comunidades, principalmente para uma série com mais de 35 anos.
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A experiência com FFVII Rebirth é de conexões, como se acabássemos de reencontrar velhos amigos após quatro longos anos e vivesse uma nova aventura com eles enquanto exploramos o mundo, lidamos com seus dilemas e nos divertimos com a leveza dessa jornada. Ela é sobre os personagens com um mundo gigantesco de plano de fundo - terminamos essa história querendo passar mais tempo com eles.
Nas últimas semanas, tornou-se a tendência comum usar de elementos do Rebirth para apontar falhas inerentes ou opinar sobre como FFXVI deveria ter feito algumas coisas, como minigames ou até a necessidade de não precisar levar tudo tão a sério. Há incompreensão da maneira como ambos os jogos foram concebidos, e como suas são visões muito distintas e concebidas por equipes separadas, ou um desgosto natural por algumas mecânicas inerentes de um dos títulos do qual outro adereçou de forma mais agradável ao interlocutor.
O aproveitamento de um dos títulos em comparação com o outro pode ressonar para além de usar um para criticar o outro: cada detalhe do FFVII Rebirth nos dá a oportunidade de admirar um pouco mais o trabalho que a CBU3 fez com Final Fantasy XVI, pois cada título da série sempre se apresentou como um jeito de experimentar novas mecânicas, temas e narrativas - e os pontos onde FFXVI focou em detrimento de outros, tão aclamados em Rebirth, foram acertados com maestria.
Desenvolvimento, Visão e Concessões
O objetivo deste artigo não é o de estabelecer comparações entre FFVII Rebirth e FFXVI, as mídias sociais já fazem barulho o bastante sobre o tema com retóricas e evidências anedóticas, e um conteúdo de qualidade voltado para este tema requer uma análise mais técnica e muito detalhada sobre aspectos que, no fim, acabariam entrando na percepção individual do autor e nas métricas usadas pelo mesmo para definir o que faz de um jogo melhor ao invés do outro.
Mas há um ponto digno de atenção quando falamos de qualquer título, antigo ou novo: sua visão.
Um jogo perfeito nunca vai existir. Enquanto alguns podem ser mundialmente aclamados, é impossível para um título abraçar tudo o que se espera dele e agradar todos os fãs, então um dos primeiros pontos a considerar no planejamento de um título novo é o que sua equipe busca proporcionar com ele, quais serão os meios necessários para chegar nesta visão e, idealmente, quais concessões serão feitas no desenvolvimento.
FFXVI e FFVII Rebirth tem visões muito diferentes e suas concessões são igualmente distintas. A mais evidente entre elas está na narrativa e método de exploração do mundo e da trama: Rebirth é um jogo de mundo aberto com foco na jornada ao redor do mundo e no aprofundamento da relação entre seus personagens enquanto progride e expande a história da obra original, de onde tira sua inspiração e atmosfera.
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FFXVI, por outro lado, é um jogo cuja narrativa e exploração é integrada à história e desenvolvimento do seu mundo, fortemente conectada ao papel do seu protagonista nos eventos da trama, uma clássica “jornada do herói”, e cada detalhe do jogo é pensado para reforçar essa proposta e valorizar a relação do interlocutor com Clive Rosfield.
Com focos narrativos e de exploração distintos, suas concessões também diferem e são, basicamente, o que torna de cada jogo único e engajador da sua própria maneira - Seja nos mapas, no gerenciamento de recursos, em como apresenta seus personagens, suas missões secundárias e até no ritmo do seu enredo, sendo um traço comum na franquia e existente desde os primórdios da série e repetido ostensivamente.
“Nenhum Final Fantasy é igual” é uma das poucas frases que a comunidade concorda de maneira quase uníssona, e enquanto as mídias sociais extraem de nós o pior lado dos debates, é importante lembrar que games são sobre como pessoas diferentes aproveitarão títulos diferentes de maneiras distintas. Nada é feito exclusivamente pensado para um único público, e mesmo se fosse, este público encontraria algo para desgostar.
Final Fantasy XVI tem uma das melhores visões que presenciei em jogos modernos hoje, digno de destacar os principais pontos da sua execução e seu legado - um dos temas principais da sua narrativa - para a série.
Clive é um ótimo protagonista
Clive Rosfield é um dos, se não o melhor protagonista que Final Fantasy já teve, e a decisão de fazer todos os eventos do jogo funcionarem em torno das atitudes e do destino do herói coloca o interlocutor em um papel crucial na narrativa.
Na sua jornada, o vemos sofrer um trauma irreparável e, aos poucos, curar-se dele, mas lidar com outros problemas como sua tendência ao autossacrifício e o habito de, literalmente, tentar resolver os problemas do mundo sozinho.
Ao mesmo tempo, o vemos amadurecer e ir de uma pessoa sem nome e desprovido dos seus propósitos para a principal voz do ideal mais importante da história de Valisthea: o direito de todos - humanos e Portadores - viverem sobre seus próprios termos.
As intenções de um homem levado pelo desejo de vingança pavimenta o caminho para o amadurecimento de uma pessoa de coração bom, sensível, buscando trazer esperança para aqueles que, como ele, não tinham nenhuma - alguém decidido a usar os seus poderes para impôr ao mundo uma mudança necessária, mesmo que, assim como Cid, ele fosse nomeado como o Fora-de-Lei mais procurado do continente.
Sua escrita e apresentação foram um excelente ar fresco de amadurecimento na narrativa de Final Fantasy. Em um mundo envolto de sofrimento - dos quais também os afetam - as experiências e conflitos de Clive trazem esperança e deixam os jogadores engajados na sua aventura por Valisthea enquanto o tornam um líder exemplar.
As Vantagens do foco na História
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Final Fantasy XVI é tão focado na sua história quanto outros títulos conhecidos da série, com uma execução próxima das que vemos em FFVII Remake, Final Fantasy X ou Final Fantasy Tactics, com uma narrativa semi-linear, com opções de missões secundárias e outras atividades conforme progredimos na história principal. Em essência, ele está nos guiando por meio de masmorras com eventos mais lineares - uma proposta distinta dos mundos abertos com os quais as gerações atuais estão acostumadas.
Em um momento onde jogadores sentem um “burnout” de mundos abertos porque a maioria deles parecem iguais e/ou até vazios, com carência de detalhes relevantes (afinal, jogos como Red Dead Redemption 2, The Witcher 3 ou Ghost of Tsushima são exceções), entender as limitações da narrativa e o senso de urgência necessário nelas é uma dádiva.
FFXVI claramente se inspirou em alguns conceitos de God of War 4 neste sentido e também em outros, como o uso de cinematics e quick time events. Saber as limitações do seu produto e da sua narrativa e concebê-los como parte integrada da sua visão requer maestria em entender seus desafios e como usar dessas mesmas limitações para dar mais ênfase nos pontos onde seu produto pode se destacar - neste caso, história, combate e visuais.
Assim, o jogador fica ainda mais conectado com a trama, e cabe à direção manusear bem as situações intensas com pausas de relaxamento para o público digerir os eventos ocorridos e se preparar para os próximos, criando um ritmo constante do qual, pelo menos na maioria relevante do jogo, foi bem executada.
Além disso, a trama abordada no jogo é extremamente pessoal: a jornada em busca de vingança que culmina em autodescoberta e, posteriormente, na determinação de mudar o que há de errado com o mundo.
Valisthea também é sobre a nossa sociedade
Valisthea é uma terra quebrada, corrompida, e seu povo beira ao absurdo em termos de escravidão e desigualdade social.
Mas tem algo absurdamente familiar naquela estrutura. Algo que incomoda, nos faz pensar no nosso mundo e sobre como funcionam as relações entre os detentores do poder e os subjugados em uma sociedade, em teoria, muito mais progressa e avançada do que o apresentado no jogo.
O uso absurdista da escravidão faz parte da essência de Final Fantasy XVI em abordar um enredo sobre grupos marginalizados e oprimidos pelas leis, reinos e até pelo povo, usados como mercadorias, tratados como sub-humanos. O jogo demonstra os sofrimentos distintos vivido por eles em uma mescla dos muitos preconceitos e desigualdades existentes na história da nossa própria sociedade, cujas lutas permanecem no século atual.
A primeira semelhança é a mais direta: Portadores são pessoas nascidas com o dom de usar magia e, por isso, são escravizados e considerados inferiores pela raça predominante, tal qual os colonizadores fizeram com inúmeros povos colonizados durante a nossa história e originou o racismo estrutural presente em nossa sociedade.
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No jogo, não há como definir se um indivíduo sabe usar magia no momento do seu nascimento, é um aspecto revelado conforme o tempo passa e essa pessoa desenvolve suas habilidades e, como demonstrado em uma das missões secundarias do jogo, um portador pode passar décadas sem revelar seus poderes - mas no momento que o fazem ou são descobertos, apenas a escravidão, tortura ou morte os aguardam - uma metáfora pontual sobre a perseguição contra grupos minoritários e como, para alguns, a única diferença entre eles e o povo dominante é um "traço", invisível ao olho, mas que foram e permanecem sendo a causa de preconceitos e ódio durante séculos.
Por fim, a relação entre os escravizados e os escravizadores é outro ponto crucial na narrativa: Portadores são usados até serem incapazes de produzir, ou seja, até seus corpos estarem tão petrificados ao ponto de não conseguirem mais usar magia, sendo largados para morrer enquanto mal tiveram uma vida digna de ser vivida. Muitos deles, por exemplo, sequer tiveram a oportunidade de tomar uma taça de vinho ou comer um pão fresco em suas vidas, dois objetos muito mundanos e comuns em Valisthea.
Quantas vezes na história, nos jornais, redes ou até na nossa vivência pessoal não presenciamos situações onde pessoas deram seus corpos e força de trabalho em troca de não conseguirem sequer o mínimo de dignidade? E quantas vezes nós, do nosso espaço privilegiado de termos um PlayStation 5 e a oportunidade de jogar FFXVI, paramos para pensar sobre isso?
De muitas maneiras, aquele continente sangrento e deprimente, onde tratar Portadores como nada além de uma propriedade de seus mestres é um ato comum e aceito pelo seu povo, nos faz olhar para a nossa sociedade e a nossa história para perceber que os paralelos estão lá, vivos, muitas vezes presentes no nosso dia-a-dia com outra roupagem.
Os mestres podem ser outros, as relações de poder podem ter uma moldura mais bonita, a discriminação pode até ser mais superficial, mas cada detalhe da política contra qual Clive se opõe possui, de alguma forma, um paralelo em nossa realidade - e em uma era onde causas sociais e direitos trabalhistas estão em constante evidência, trazer essas reflexões em uma obra de ficção sem as esfregar na cara do interlocutor requer o uso impecável de escrita e narrativa.
Claro, Final Fantasy XVI ainda é um mundo mágico cujo enredo gira em torno de um herói que se rebela contra as relações pré-estabelecidas de poder e tenta fazer algo sobre elas com seu poder especial e a ajuda de seus aliados, cuja solução gira em torno de “arrancar o mal pela raiz” ao destruir os Cristais-Máter, e seu enredo se torna mais voltado para a fantasia conforme progredimos porque, afinal, é um jogo de fantasia.
Mas os paralelos estão lá com uma mensagem clara sobre problemas da nossa sociedade, e até as pequenas ações como a de construir um lugar seguro para os Portadores e estabelecer uma comunidade em torno deles, ou valorizar o direito às escolhas de como desejam viver para além de obedecer aos seus mestres até seus últimos dias serve, também, como um refúgio ao interlocutor de que nem tudo está despedaçado e perdido - tanto em Valisthea quanto na nossa realidade.
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Apesar dos males, Valisthea é uma terra bonita
FFXVI, com seu mapa separado por estágios/regiões, abrangendo apenas um continente ao invés de um mundo inteiro, tem uma apresentação visual mais detalhada em detrimento de expansão e o senso de descoberta em explorar cada região por conta própria.
A “recompensa” ou “troca” nesse caso é a sensação de estar jogando um título do PlayStation 5 em teoria e prática, com belos cenários vívidos, bem-iluminados, recheado de um excelente planejamento de sombras e uma direção artística exemplar de um mundo medieval envolto de magia, perigos e desafios, sendo ainda um dos mundos mais bonitos que a nova geração já proporcionou.
Também há um certo fascínio em ver como este mundo está evoluindo. Conforme a história progride, os assuntos e ações dos NPCs mudam e até figuras menos relevantes que Clive ajuda em missões secundárias podem ser vistos realizando atividades diferentes após a resolução de seus dilemas, integrando ao sentimento de que, aos poucos, medidas estão sendo tomadas por conta das atitudes do herói, algumas para o bem no caso de comunidades mais simpáticas com a sua causa, e outras para muito pior, como os Black Shields em Rosaria.
Apesar da exploração limitada e falta de atividades menos voltadas para “fetch quests” e combate, Valisthea parece uma belíssima homenagem ao mundo de Final Fantasy, em especial aos seus jogos mais clássicos.
Não é sobre a recompensa, é sobre a narrativa
As missões secundárias de FFXVI recebem muitas críticas e elogios pela sua execução. Afinal, suas recompensas fora experiência extra são irrelevantes para fins materiais: itens que você consegue facilmente, dinheiro que, após algum tempo, você tem em abundância e um sistema de reputação com algumas recompensas essenciais por caçar monstros e ajudar NPCs.
Cada missão neste jogo tem um intuito comumente associado com mostrar ao jogador uma nova face das relações sociais, políticas ou culturais de Valisthea, ou se juntar com outras para criar uma história maior, por vezes amarga ou até comovente - desafiando os padrões convencionais de jogos em puxar jogadores às side quests pelo o que elas podem oferecer e sim por eles se importarem com os personagens e eventos daquele mundo, tal qual Clive faria.
No fim, as histórias contadas nas missões secundárias são a verdadeira recompensa delas em FFXVI, e a história do jogo se torna mais abrangente, completa e sensível se dedicamos nosso tempo a explorar seu universo através delas.
O combate continua engajador
O combate de Final Fantasy XVI é seu maior destaque e, também, maior polêmica. Ele abdica de muitos elementos conhecidos nos RPGs e na série para trazer uma ação em tempo real voltada para combinações entre os poderes de Eikons de Clive, com sequenciamento entre eles e manuseio dos seus tempos de recarga para não quebrar o ritmo da batalha.
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Seu preço ficou claro e se tornou o principal motivo das críticas ao seu respeito: a falta de um planejamento estratégico abrangente que fosse além do “desviar e atacar”. A ausência de um sistema de elementos, por exemplo, faz com que usar magias de fogo contra Bombas se torne irrelevante e a suposta “má fama” de estar mais próximo de um jogo da série Devil May Cry, cujo combate dos últimos dois jogos da série foi dirigido por Ryota Suzuki, também responsável pelo combate de FFXVI.
Na prática, uma vez que deixamos essas preconcepções de lado e avaliamos o combate pelo que ele é, temos um dos sistemas mais engajadores, únicos e divertidos da série nos últimos tempos, enquanto carrega a herança histórica de outros jogos, mas com sua própria maneira de executá-los.
É muito recompensador criar combinações novas de Eikons e/ou acertar o timing dos desvios e habilidades, há um senso de descoberta incrível quando damos chance aos efeitos que desbloqueamos e os juntamos com outras opções e sua visão criativa de tornar cada desafio palpável com qualquer combinação foi bem aplicada.
Nem tudo é perfeito
FFVII Rebirth me fez, de fato, apreciar mais muitos detalhes de FFXVI, mas também exalta alguns dos seus principais defeitos do quais os distanciam do gênero de RPG.
Por exemplo, seu sistema de equipamentos permanece com a lógica de “fazer os números crescerem” - ou seja, não existem motivos para o jogador optar por uma espada com menos força do que a com números mais altos disponíveis no seu inventário, e o mesmo se aplica às armaduras.
Esse mesmo problema é encontrado na escolha deliberada de extinguir sistemas de status e afinidades elementais, ambos em prol de tornar o combate mais fluido e ágil sem impedimentos para os jogadores executarem seus comandos, deixando-o perto demais do aspecto de ação e mais distante dos fatores estratégicos.
É impossível não olhar para a diversidade de builds com equipamentos, Matérias e armaduras em FFVII Rebirth/Remake, ou até para outros títulos mais antigos e sentir que FFXVI abdicou um pouco demais desse aspecto, e como cada crítica a este ponto faz sentido.
A CBU 3 tem a oportunidade de adereçar os equipamentos e talvez até os benefícios em usá-los com a próxima expansão prevista para 18 de abril, The Rising Tide, mas como ela se passará antes do último capítulo, mais de 90% de FFXVI ainda se passará com um sistema mais linear, e nem todo jogador terá interesse em repetir a história no nível mais difícil, mesmo sendo uma recomendação comum dos desenvolvedores e da comunidade.
Conclusão
Nove meses após seu lançamento, Final Fantasy XVI ainda possui diversas qualidades inerentes de uma visão distinta de FF7 Rebirth e outros títulos da franquia, com benefícios que você, naturalmente, só encontrará em títulos que colocam o foco da sua história como principal destaque do produto.
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Ele não tem a mesma descontração, liberdade, ou atividades complementares de jogos de mundo aberto e não foi sequer planejado para ter, mas qualquer um que dê uma chance a ele encontrará um dos melhores enredos e personagens da série, com um combate engajador e visuais dignos de um jogo da atual geração - além, é claro, de uma mensagem clara sobre liberdade e igualdade em contraponto com uma sociedade quebrada e corrompida pelas relações de poder.
Obrigado pela leitura!
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