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"Por Aqueles que Ainda Virão" - O Simbolismo do lema de Clair Obscur: Expedition 33

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Uma análise do lema mais famoso de Clair Obscur: Expedition 33 e suas camadas dentro do jogo, na indústria dos videogames, e em nossa existência coletiva.

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revisado por Romeu

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Durante o último The Game Awards, onde Clair Obscur: Expedition 33 foi o grande destaque da noite ao se tornar o jogo mais premiado da história do evento, a frase “for those who come after” (por aqueles que ainda virão) ecoou como um mantra quando o RPG da Sandfall Interactive recebia algum prêmio — a frase foi proferida pela primeira vez por Jennifer English quando recebeu o prêmio de melhor atuação, e posteriormente por Guillaume Broche quando o jogo foi nomeado como Game of the Year de 2025.

Na premiação, a frase foi também uma forma de reconhecer que nenhum marco criativo nasce no vácuo, e que todo sucesso carrega uma dívida com o passado e uma responsabilidade com o futuro, mas ela oferece mais camadas quando aprofundada na lore e universo criado pela equipe da Sandfall Interactive.

Enquanto, a essa altura, pode soar até genérico, o lema das Expedições tem diversas linhas interpretativas, que passam pela proposta de Clair Obscur, no conceito central de um dos seus personagens, no reconhecimento do legado de outros títulos e grandes desenvolvedoras que criaram as inspirações para a equipe da Sandfall, e pelo nosso compromisso coletivo com o futuro.

Então, vamos destrinchar esse discurso dentro e fora do jogo e suas implicações narrativas e existenciais.

Por Aqueles que Ainda Virão: O Significado do Lema da Expedição

“For those who come after” é, em essência, o princípio de um dos temas de Clair Obscur. Na obra, ela é um lema comum entre os membros da Expedição, um mantra quase sempre repetido por Gustave, e tem como principal simbolismo o sentido de legado em um universo onde a morte é uma certeza.

O tempo é uma contagem regressiva concreta, e em Lumière, ela se dá por um enorme número escrito à distância pela Paintress. Cada expedição parte sabendo que seus dias são limitados e que, ao final do ciclo, o Gommage os aguardará. Viver o último ano em uma jornada, para os que decidem confrontar seu destino, é contribuir para algo que sobreviverá à própria existência e contribuirá para o futuro.

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O lema representa o esforço contínuo de cada expedição para deixar algo que facilite o caminho das próximas, como um trabalho coletivo para as próximas gerações em prol de um esforço em comum. O que importa é contribuir para um objetivo maior, mesmo sabendo que talvez nunca se veja o resultado final.

Por isso, enquanto exploramos o mundo, encontramos mapas incompletos, notas de pesquisa rabiscadas às pressas, ganchos cravados em paredes para tornar escaladas futuras possíveis — tudo compõe um acervo de tentativas, fracassos e pequenas vitórias que, somadas, aproximam a Expedição seguinte do objetivo final: derrotar a Paintress.

Este progresso, entretanto, também vem com o lembrete macabro da incerteza e da morte: uma das cenas mais simbólicas das primeiras horas de Clair Obscur é quando Gustave se depara com uma pilha de corpos petrificados poucos minutos após colocar os pés no Continente, membros de expedições anteriores mortos no exato momento em que chegaram, não muito diferente da maioria do seu grupo — os corpos são um elemento visual recorrente de várias regiões do jogo, servindo lembretes de que alguém esteve ali antes, tentou, falhou, mas avançou um pouco mais, e que sua chegada ali é o resultado coletivo de esforços anteriores.

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Essa filosofia se condensa na figura que mais profere o lema no jogo, Gustave. Vemos o protagonista perder sua amada — com quem terminou em algum momento por discordâncias referentes ao futuro, e cujo arrependimento de não aproveitar o tempo que lhes restava era evidente —, o que serve de impulso para ter ainda mais determinação em partir, e mesmo quando tudo estava ao ponto de sucumbir, o protagonista consegue encontrar motivação para seguir em frente.

Gustave também compreende seu senso de dever para com as gerações futuras. A própria frase “for those who come after” é utilizada sempre que o personagem anota em seu diário uma nova descoberta sobre o mundo, para que, uma vez que o caderno retorne para Lumiére, ou se um dia uma expedição futura encontrá-lo, ele tenha deixado sua marca e seus aprendizados para que, se ele falhar, outro possa suceder seguindo seus passos e aprendendo com seus acertos e erros.

A abordagem do personagem e o propósito da frase também estão ligados ao tema central de Expedition 33: luto. Viver em Lumière é aprender a conviver com a ausência e com a certeza de que uma hora seu dia chegará — a mesma certeza que temos em nossa existência material, mas que tendemos a ignorar —, e quando a perda e a morte são tão evidentemente inevitáveis, nasce a necessidade de que elas ofereçam algo: que cada vida finita deixe marcas que facilitem a vida de quem ainda não chegou para dar propósito à perda, como um pacto silencioso entre gerações que nunca se encontrarão e uma resposta ética à inevitabilidade da morte: se o fim é certo, o sentido está no que permanece quando morremos.

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De todos os personagens da Expedição 33, Gustave é o que melhor entende o seu papel nesse contrato e segue à risca aquilo que ele espera de si mesmo e de outros expedicionários, e a transmissão e propósito do seu legado têm forma física na trama em Maelle, para quem ele repassa seus ensinamentos e para quem, de certa maneira, o objetivo da Expedição 33 melhor representa: até chegar na idade de Gustave, Maelle ainda terá metade da sua vida inteira para viver, e assim como ela, há diversos outros jovens que dependem de cada Expedição para terem uma existência plena e livre para ser aproveitada sem contagens regressivas ou a assombração da morte inevitável.

O Sentido do Legado nos Games

O senso de continuidade, de passagem de bastão entre gerações, não é novo na indústria de jogos e surge em homenagens a criadores que abriram caminhos e em agradecimentos a influências que moldaram carreiras inteiras.

Quando a equipe de Clair Obscur: Expedition 33 subiu ao palco do The Game Awards para receber o troféu do Jogo do Ano, o discurso de seu diretor foi certeiro na abordagem de legado apresentado pelo principal lema do jogo ao agradecer a Hironobu Sakaguchi, criador de Final Fantasy, e até mesmo tutoriais no YouTube que ensinaram como criar jogos. Foi seu ato de demonstração do reconhecimento de que sonhos criativos só existem porque alguém pavimentou o caminho, experimentou, teve seus acertos e erros e ensinou para gerações futuras.

Não é coincidência que esse reconhecimento tenha ocorrido em um momento histórico para a Sandfall Interactive: a partir daquele ponto, Expedition 33 se tornava um marco histórico para estúdios independentes, especialmente fora dos grandes centros tradicionais da indústria. O jogo provou que é possível competir ao nível de grandes colossos da indústria sem replicar modelos dominantes, com um orçamento menor e com liberdade criativa e paixão, deixando sua parte nas contribuições para a história da criação artística.

Nenhum movimento surge do nada: músicos aprendem com músicos anteriores, cineastas com cineastas, escritores com escritores. Jogos não são diferentes. Final Fantasy inspirou gerações de desenvolvedores, assim como Chrono Trigger, Xenogears, Persona e tantos outros. Agora, Clair Obscur: Expedition 33 ocupa esse mesmo espaço para as futuras gerações de desenvolvedores, como parte da cadeia de influência que moldará o futuro da indústria e, principalmente, do gênero de RPGs.

“For those who come after”, nesse contexto, é a declaração metalinguística do propósito de desenvolver uma obra. A equipe por trás de Clair Obscur reconhece que o título é a culminação de heranças criativas e que agora ele também semeia o caminho da indústria nos próximos anos, uma referência que servirá de inspiração para os futuros desenvolvedores da geração seguinte.

O Nosso Legado para os Próximos

Do outro lado da tela, existem nós. Podemos ampliar o escopo do lema para fora da indústria e dentro das nossas existências individuais. Todos, em alguma medida, deixam algo para quem vem depois; sejam professores em salas de aula, pais e mães durante a criação dos seus filhos, amigos que deixam marcas duradouras ou até profissionais de todo tipo de âmbito que, através das suas pequenas ações individuais e coletivas, também fazem algo para gerações futuras.

O lema de Expedition 33, no fim, nos convida a pensar sobre o que estamos construindo para o futuro. O que deixamos quando partimos? Que caminhos facilitamos? Que erros registramos para não serem repetidos? Diante das nossas conquistas imediatas, quais estão sendo nossos passos em relação à ética da continuidade para o nosso mundo? Estamos construindo a realidade que queremos que nossos filhos, sobrinhos, irmãos mais novos, ou os amigos deles, e qualquer outro que ainda virá, vivam?

Quando partirmos, o que permanece são as lembranças, mas também os ensinamentos, histórias e o legado que deixamos. Eles não eliminarão a dor da perda — caberá aos que ficam saber como gerenciá-la — mas dá a ela um propósito para nossas ações fazerem sentido, para a conclusão do contrato entre o nós de hoje e o eles de amanhã.

Saber que alguém deixou algo significativo — uma obra, ideia ou influência positiva — não apaga a ausência, mas a transforma em memória, e Clair Obscur: Expedition 33 entende isso. O jogo não oferece respostas fáceis e tampouco finais confortantes e felizes para o luto, mas busca comunicar a perspectiva de que viver, mesmo sob a sombra do fim, pode ser significativo se houver consciência de que fazemos parte de algo maior do que nós mesmos

Talvez seja por isso que o lema tenha feito tanto sentido e sido tão simbólico no The Game Awards: em um mundo viciado no imediatismo, Expedition 33 nos lembra que o amanhã chega, e que quando um cai, nós continuamos.

Todos nós, em maior ou menor escala, participamos dessa cadeia. O que deixamos — em palavras, gestos, obras ou exemplos — é o que dará sentido à nossa passagem diante da certeza de um dia não existirmos mais, a nossa memória viva e legado para aqueles que ainda não chegaram onde nós, coletivamente, chegamos, e que caminharão por trilhas que ajudamos a abrir.

Por aqueles que ainda virão.