Uma Breve História da Representatividade nos Games
Como em qualquer outro tipo de mídia presente nos dias atuais, a representatividade de personagens LGBTQIA+ nas histórias fantásticas e aventuras diversas que gamers ao redor do mundo inteiro vivem diariamente é relativamente recente, e ainda há muita discussão envolvendo um tema que deveria ser simples: pessoas dos mais diferentes gêneros e sexualidades existem, e nada mais justo que todo mundo poder se sentir e se ver representado de alguma forma.
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A primeira e mais antiga aparição de um personagem confirmado como LGBT nos games foi em 1985, no indie francês "Le Crime du Parking", onde ao final do mistério de assassinato o jogador descobre que o culpado é um traficante gay chamado Paco. Não é dada nenhuma informação ou profundidade sobre o personagem dele além da menção à sua sexualidade em uma tela de texto, mas Paco tem o título como o primeiro personagem gay em um videogame.
Ao longo dos anos seguintes, personagens LGBT foram aparecendo aqui e ali, devagar e sendo constantemente usados como alívio cômico, como a personagem Erica, do jogo Catherine, sobre quem falaremos mais abaixo, ou extremamente estereotipados e/ou sexualizados, muitas vezes sendo retratados como vilões. Durante toda a década de 80 até os anos 2000, pouquíssimos exemplos existiam, e alguns grandes avanços no cenário, como o primeiro jogo a permitir o casamento entre personagens do mesmo sexo só chegou nas mãos do público em 1998, com o lançamento de Fallout 2.
Felizmente nos últimos anos esse cenário vem mudando, bem devagar, mas ainda de forma acelerada se formos comparar com a representatividade em outras formas de mídia, e aqui a UmGamer trouxe uma análise em cima dessa história tão importante, bem como exemplos de vários jogos e personagens que discutem essas questões através de seus arcos, tramas e existência.
A Escolha do Jogador
Primeiramente, precisamos falar de uma categoria de jogos nos quais o protagonista, tecnicamente, é canonicamente bi ou pansexual, e a escolha de com quem se relacionar fica a critério do jogador. Jogos como Stardew Valley, Baldur’s Gate 3, Dragon Age, Assassin’s Creed Odyssey e Cyberpunk 2077 oferecem uma quantidade de NPCs de diferentes gêneros, e você decide qual orientação sexual o seu personagem terá durante sua campanha ao decidir em qual desses pretendentes você quer investir.
Frequentemente nesses jogos os NPCs “romanceáveis”, ou seja, com os quais o jogador consegue fazer com que seu personagem se relacione, também acabam se enquadrando dentro do espectro pan/bisexual por aceitarem romances com jogadores de todos os gêneros, mas há exceções como a famosa - por bom motivo - Judy, do Cyberpunk, com a qual o jogador só consegue cultivar um relacionamento caso seu personagem também seja uma mulher, já que ela é lésbica.
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Vale destacar nessa categoria especialmente o sistema de criação de personagem de Cyberpunk 2077, que ao permitir que o jogador personalize literalmente o corpo inteiro de V, foi um dos primeiros jogos a permitir a criação de um personagem jogável transexual.
Exemplos de Representatividade LGBTQIA+ em Jogos Notórios
Além de situações nas quais o jogador pode escolher em qual direção levar a sexualidade de um ou mais personagens, temos, claro, personagens em diversos jogos que são canonicamente LGBTQIA+, seja isso deixado explícito ou implícito no jogo, ou até mesmo revelado posteriormente por devs e diretores em entrevistas. Abaixo, juntamos uma lista com algumas das representatividades mais famosas dentro dos games e algumas que pode ser que você nem tenha ouvido falar sobre, tentando compreender o máximo de identidades possíveis e trazer pelo menos um exemplo de cada letra da sigla.
Super Mario Bros. 2
O primeiro jogo nessa lista pode surpreender, tanto por ser lançado em 1988 quanto por ser um jogo da Nintendo, famosamente uma empresa que gosta de manter seus jogos o mais family friendly e longe de tópicos controversos possíveis.
Porém, inesperadamente, entre os grandes estúdios de games japoneses contemporâneos a ela, a Nintendo tem uma relação surpreendentemente próxima com tópicos e representações queer, embora frequentemente apenas de forma subliminar e implícita, como os vários momentos que envolvem o questionamento do gênero do protagonista de uma das suas séries mais famosas, o Link.
Antes disso, no entanto, no lançamento de Super Mario Bros. 2 nos foi apresentada possivelmente a primeira personagem trans da história dos videogames: Birdo, uma vilã que se identifica como mulher apesar de ter nascido com um corpo masculino e exige ser chamada pelo seu nome real, Birdetta.
Life is Strange
Como explicamos em um artigo anterior sobre ele, a protagonista do famoso jogo player choice-based Life is Strange, originalmente lançado em 2015, é feita para que qualquer pessoa que jogue o jogo consiga se identificar com ela o máximo possível, tanto que seu nome, aparência, roupas, etc, tudo invoca uma neutralidade, uma certa androginia ou ageneridade. Um dos aspectos feitos para que cada jogador adapte sua própria vivência ao seu gameplay, uma das escolhas mais famosas do game é a decisão de beijar ou não Chloe, e mais tarde Warren. Por conta disso, Max Caulfield é canonicamente considerada bisexual.
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Já no caso de Chloe Price, ao longo do jogo base e da DLC Before the Storm, que conta a história de Chloe e Rachel, por meio de várias menções e diálogos em diversos pontos da história, dá a entender que ela, atualmente, se relaciona exclusivamente com outras mulheres, e é considerada canonicamente lésbica, assim como outra personagem que no primeiro jogo não passava de uma figura de fundo junto a outros alunos que estudam com Max, mas que na sequência Life is Strange 3, tem um papel e uma importância maior, a Steph.
Possivelmente por conta de um motivo semelhante ao de Max ser bissexual, a protagonista do terceiro game, Alex Chen, define sua própria sexualidade como “se atrair por pessoas, independente do gênero” e é então mais uma personagem canonicamente bi/pansexual.
NieR
A franquia de NieR é uma agradável surpresa, se destacando entre outras grandes franquias famosas e originárias do Japão que se recusam praticamente até os dias atuais a sequer mencionar a possibilidade de um personagem LGBT, pela quantidade deles presentes nos seus jogos desde o lançamento de NieR: Gestalt em 2010.
Apresentada primeiramente no próprio NieR Gestalt, e reapresentada a um novo público mais recentemente em 2021 com o lançamento do remake NieR Replicant ver. 1.22474487139…, uma das representatividades mais únicas que não podemos deixar de mencionar é a trazida por Kainé, que é uma pessoa intersexo, ou seja, que nasceu com uma mistura de características biologicamente masculinas e femininas, e no jogo ela se identifica simplesmente como mulher.
Em ambas as versões, Gestalt e Replicant, também temos o Emil, que foi confirmado pelo próprio criador do jogo, Yoko Taro, em uma entrevista como um homem gay. Esse fato também é reafirmado no livro Grimoire Nier, que confirma também que Emil tinha uma quedinha pelo Nier.
Já em NieR: Automata, não temos personagens principais que sejam canonicamente LGBT, mas se trata de um jogo que incentiva muito a exploração e que as side quests sejam completadas para que o jogador tenha mais informações sobre o mundo e a história, e no meio dessas side quests e diálogos opcionais temos duas histórias de amor sáfico, embora ambas com final trágico.
A primeira envolve a Operator 6O, operadora responsável pela 2B e que se comunica com ela ao longo do jogo. Existe um diálogo no qual 6O conta para 2B que chamou outra Operadora para sair, mas tomou um fora e ligou para 2B para “desabafar”.
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A segunda envolve as Androides 16D e sua instrutora 11B, e uma side quest chamada “11B’s Memento”. Dependendo da escolha do jogador entre duas opções ao final da quest, 16D acaba confessando para 2B que estava em um relacionamento com 11B, e que quer se tornar agora uma androide de combate, para vingar a morte da amada.
Final Fantasy
Infelizmente, não podemos dizer o mesmo que falamos de NieR sobre outra franquia imensa dentro dos JRPGs mais famosos do mundo: Final Fantasy.
Seguindo a linha mais comum dentre empresas japonesas, o tema foi ignorado durante muitos anos. O primeiro personagem principal abertamente gay da franquia foi apresentado ao público apenas em 2023: Dion Lesage, o Dominante do Bahamut no Final Fantasy XVI, que protagoniza um romance com seu companheiro Terence.
Antes da criação de Dion, o detentor do título de personagem mais “explicitamente” LGBT da franquia vai surpreender a muitos: Quina Quen, do Final Fantasy IX. Durante todo o jogo, Quina usa os pronomes “s/he”, e é membro de uma raça que canonicamente não tem gênero. Isso não é dito explicitamente, mas dessas informações podemos entender Quina como o primeiro personagem agênero da lista, e um dos pouquíssimos no mundo dos games.
De resto, o máximo que a franquia nos trouxe foram dicas sutis, relacionamentos implícitos, porém sempre deixando ampla margem de dúvida por nunca serem de fato confirmados como tal, nem em seus respectivos jogos e nem por ninguém da Square posteriormente.
Podemos contar nessa categoria o excêntrico Andrea Rhodea, de FFVII, que no Remake foi deixado ainda mais estereotipado como alguém que não se conforma às regras sociais de gênero, e o relacionamento de Fang e Vanille em Final Fantasy XIII, tido pela maioria esmagadora dos fãs como romântico apesar da falta de confirmação da parte do estúdio.
Persona 4
Ainda no tema tanto de JRPGs quanto de informações deixadas implícitas, porém nunca confirmadas abertamente, temos o caso de Kanji Tatsumi em Persona 4. O arco do personagem no jogo é todo centrado em torno da dificuldade dele em aceitar sua própria expressão de gênero, masculinidade e homossexualidade, apesar de isso nunca ser explicitamente dito com essas palavras. A Shadow Self dele, ou seja, o lado de si que ele tem dificuldade de aceitar, é um estereótipo gay que muitas vezes acaba ficando até forçado.
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O jogo e essa representatividade são bastante questionados por conta de piadas feitas por outros personagens e estereótipos reforçados, mas considerando que esse jogo foi lançado em 2008, no Japão, estava definitivamente à frente de sua época.
Valorant
Uma das empresas mais relevantes no cenário gamer e dos e-sports é atualmente sem dúvidas a Riot Games, e a empresa tem feito esforços nos últimos tempos para incluir mais representatividade LGBT nos seus jogos. Sobre o universo de Runeterra não iremos falar nesse artigo, é um tema muito rico que merece ser explorado mais a fundo em um artigo separado dedicado a ele, mas aqui iremos mencionar personagens da grande potência da Riot no mundo dos First Person Shooters: Valorant.
Em 2022 a página oficial do jogo confirmou o relacionamento canonicamente lésbico entre duas de suas personagens, Raze e Killjoy, que eram as duas únicas personagens queer no jogo até o lançamento, em março de 2024, de Clove, ume agente canonicamente não-binárie, que usa pronomes neutros (elu/delu em português, they/them no original).
A identidade não binária é uma dos menos representadas e menos conhecidas pelas pessoas “de fora da bolha”, que não têm a vivência queer no seu dia a dia, então um jogo tão famoso de uma empresa imensa como a Riot trazer essa representatividade foi algo que apesar de controverso, foi muito positivo para a comunidade em geral.
Hades
Hades é um jogo que quase entra na categoria de escolha do jogador, já que tecnicamente é ele quem escolhe investir no relacionamento com Megaera ou Thanatos, ou até mesmo entrar em um trisal com ambos, mas ganhou seu tópico próprio já que canonicamente, Zagreus é um dos poucos personagens não-monogâmicos representados em um game.
Além do trisal principal, temos também Dusa, uma das personagens mais amadas do jogo, que revela com algumas linhas de diálogo não ter qualquer vontade ou intenção de ter qualquer relacionamento físico, se enquadrando dentro do espectro Assexual, o casal literalmente aquileano Patroclus e Achilles, que protagonizam uma das quests mais amadas pelos fãs no game e Chaos, a entidade/deus do caos, que não tem um gênero definido, é referido no jogo apenas com pronomes neutros (they/them) e tem como única expressão de gênero sua aparência absurdamente - e propositalmente - andrógina.
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A protagonista da sequência, que está em Early Access no momento (falamos mais sobre ela aqui!), Melinöe, segue a mesma linha do seu irmão mais velho. Como o jogo completo ainda não foi lançado, não sabemos quais serão as opções de NPCs romanceáveis, mas já é notória a… admiração da nossa protagonista por uma de suas rivais no jogo, Nemesis, e tudo indica que ela terá um papel semelhante a Thanatos.
Undertale
Outro jogo indie que traz uma representatividade surpreendentemente presente e eficaz é o hit instantâneo Undertale, lançado em 2015. Semelhante ao que foi feito em Life is Strange, o gênero dos protagonistas Frisk e Chara é deixado em aberto com a intenção de que o jogador projete o próprio gênero e sexualidade neles. Ambos são chamados apenas no neutro, com os pronomes they ou it e tem aparência bastante andrógina.
Ainda em Undertale temos Undyne e Alphys, que ao final do jogo formam canonicamente um casal sáfico, e até o que muitos consideram uma personagem trans, uma existência que no jogo original habitava o NPC Mad Dummy e usava os pronomes they/them, mas que na versão do Switch passa a habitar um NPC feminino, Mad Mew Mew, se chamar nos pronomes femininos e declarar que no segundo que ela viu esse corpo, sabia que era ela.
{Undyne e Alphys}
Catherine
Catherine talvez seja o nome mais desconhecido dessa lista, apesar de ser um jogo com um sucesso imenso. Lançado em sua versão original em 2011 e como o remake Catherine: Full Body em 2019, é um jogo focado em puzzles e storytelling e nos trouxe uma das primeiras personagens aberta e canonicamente transexuais: Erica Anderson, uma garçonete no bar que o protagonista e seus amigos frequentam e aonde boa parte do jogo se passa.
Erica é o que pode ser chamado de um ótimo exemplo de representatividade controversa e um tanto quanto mal representada, devido a um único diálogo no final do game. Ela protagoniza um plot secundário de romance com um dos amigos do personagem principal, Toby, e infelizmente essa linha da história se conclui no game original com uma cena onde os amigos riem da cara de Toby por ele ser “enganado” por Erica após ter dormido com ela, reforçando estereótipos negativos.
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Pelo lado positivo, apesar das “piadas” com Erica feitas pelo grupo de amigos, todos respeitam sua transição, seus pronomes e seu nome. No remake, uma das rotas possíveis inclui uma cena do grupo nos tempos de escola, e nessa cena é possível vermos Erica antes de sua transição, e as suas linhas de diálogo deixam claro que ela pretende iniciá-la em breve.
The Last of Us
Um dos, se não o jogo de survival e tiro em primeira pessoa com a temática de zumbi mais celebrado dos últimos anos, sucesso não só entre os gamers, mas entre o público geral com o lançamento da aclamada série estrelando Pedro Pascal como Joel e Bella Ramsey como Ellie (Bella é uma pessoa não binária, o que adiciona outra camada de representatividade na personagem). No jogo, porém, é revelado primeiramente através da DLC “Left Behind” do jogo original e depois reforçado no 2 com seu relacionamento com Dina que Ellie é uma personagem lésbica, se atraindo e se relacionando exclusivamente com mulheres.
Vale mencionar também os dois sobreviventes Bill e Frank, que eram no jogo um casal gay, mas no momento que encontramos Bill, seu parceiro Frank já havia cometido suicídio após ser infectado. Já na série, foi feita uma belíssima releitura dessa parte do jogo, resultando em um episódio verdadeiramente emocionante que conta a história de amor dos dois, e mudando alguns detalhes da história para dar um final mais merecidamente tranquilo a eles.
Já em Last of Us 2, temos como um personagem relevante Lev, um menino trans de 13 anos que viaja com sua irmã Yara, e com quem encontramos e formamos uma conexão jogando como Abby.
Conclusão
Ainda poderíamos mencionar personagens icônicos como a Poison, de Street Fighter, que foi durante muito tempo uma das únicas representações conhecidas de uma mulher trans nos games, alguns menos conhecidos como Paolo de La Vega, um homem trans que é líder de uma facção em Far Cry 6 ou até mesmo a protagonista de Horizon Forbidden West, Aloy, que ao final da DLC Burning Shores é confirmada como sáfica ao beijar a guerreira Seyka.
Apesar dos diversos exemplos trazidos aqui, a imensa maioria deles são bem recentes e os que são mais antigos tendem a trazer questões e piadas problemáticas atreladas com a representatividade que tiram um pouco do seu brilho. Porém, estamos definitivamente caminhando em direção a um futuro mais diverso no mundo dos games, inclusive com muitos desenvolvedores LGBTQIA+ ingressando na indústria nos últimos anos e o lançamento de jogos voltados para esse público alvo.
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Apesar da resistência e preconceito que famosamente esse tema enfrenta em comunidades “gamers”, a existência de pessoas fora do padrão cis-hétero está pouco a pouco sendo introduzida nesse universo, depois de muito esforço, espelhando a luta pelos direitos dessas mesmas pessoas na vida real.
Obrigada por lerem, e até a próxima!
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