A Epidemia que Divide Opiniões
No universo em constante expansão dos jogos Soulslike, poucos títulos conseguem se destacar pela originalidade do cenário e pela construção de atmosfera. WUCHANG: Fallen Feathers chega com essa proposta: levar o jogador para a China do final da dinastia Ming, um período turbulento da história real, mergulhado em elementos sobrenaturais e mitológicos de forma visceral. Desenvolvido pelo estúdio chinês Leenzee Games, o jogo se propõe a oferecer não só combates desafiadores, mas uma experiência imersiva enraizada na cultura e folclore chineses, algo ainda raro no gênero.
Com uma protagonista marcante, um sistema de combate inspirado em Sekiro e Bloodborne, e um mundo que mistura história e horror cósmico, WUCHANG: Fallen Feathers nos surpreende como um dos projetos independentes mais ambiciosos dos últimos anos.

O Cenário: Um País em Ruínas e Sombras
WUCHANG se passa nos últimos dias da dinastia Ming, um período de guerra civil, pragas, colapsos sociais e invasões externas. Mas em vez de uma narrativa puramente histórica, o jogo transforma essa decadência real em uma fábula de horror sombrio. O mundo está assolado por uma doença sobrenatural chamada "O Flagelo das Penas", que transforma humanos em criaturas grotescas com penas negras e comportamentos violentos. A protagonista Wuchang, uma guerreira amnésica, acorda em meio a esse pesadelo com sinais da mesma doença se manifestando em seu próprio corpo.
O que começa como uma busca pela verdade sobre sua identidade se transforma em uma jornada existencial, onde o jogador vai desenterrando não apenas segredos do mundo, mas do próprio eu. A ambientação mistura aldeias em ruínas, templos decadentes, florestas amaldiçoadas e cidades devastadas.
A Protagonista e a Narrativa
Wuchang é uma personagem silenciosa, mas extremamente bem construída. Sua trajetória é marcada por uma dor interna silenciosa que ecoa através das escolhas visuais do jogo: seu rosto pálido, os olhos que brilham sob a névoa, os trajes carregados de história. Conforme avançamos, vamos descobrindo mais sobre seu passado por meio de fragmentos de texto, visões e interações enigmáticas com NPCs.
A narrativa é contada de forma indireta, ao estilo Dark Souls, mas com um toque mais claro. Há mais diálogos do que títulos da FromSoftware, mas ainda assim, tudo é envolto em metáforas, ambiguidades e o uso de simbolismos da filosofia taoísta e budista. O jogador não é apenas incentivado a derrotar inimigos, mas a interpretar o mundo.
É especialmente interessante como a doença das penas é uma alegoria tanto para a perda da humanidade quanto para a possibilidade de ascensão espiritual. Essa dualidade permeia todo o jogo: o que é maldição para alguns pode ser iluminação para outros.

Sistema de Combate: Estilo com Substância
O combate é o coração de qualquer Soulslike, e em WUCHANG: Fallen Feathers, ele é brutal, preciso e estiloso. O jogo adota um sistema de postura, semelhante ao de Sekiro, mas incorpora também elementos mais pesados, como em Lies of P e Nioh. A diferença aqui está nos estilos de combate: Wuchang pode alternar entre diferentes armas e formas de lutar, cada uma com animações belíssimas e cadência única.
Existem espadas curtas, alabardas, garras e até leques de lâminas, cada um com vantagens táticas específicas. Há também a mecânica das “penas demoníacas”, habilidades especiais que consomem energia espiritual e são ativadas em momentos de risco ou de desequilíbrio emocional da personagem. Essas habilidades alteram momentaneamente a filosofia de combate, permitindo ataques mais agressivos ou defensivos.
A dificuldade é elevada, mas não é injusta. Os chefes são desafiadores, com padrões de ataque complexos, e cada um representa uma manifestação do mundo corrompido ao redor. Um monge-coruja gigante, um guerreiro samurai alado e uma cortesã cega com serpentes emplumadas são apenas alguns exemplos das criaturas que evocam pesadelos e encantamento.

Progressão e Personalização
O sistema de progressão permite que o jogador molde Wuchang de acordo com seu estilo. Há atributos clássicos como força, destreza e espiritualidade, mas também categorias específicas como “vontade interna” (resiliência contra a corrupção das penas) e “disciplina espiritual” (capacidade de canalizar os poderes ocultos sem perder a sanidade).
Os equipamentos também são personalizáveis. É possível misturar armas com encantamentos taoístas, acoplar penas especiais para alterar movimentos e até mesmo sintonizar armaduras com certos espíritos ancestrais.
Estética e Som: Uma Pintura em Movimento
Se há um elemento em que WUCHANG: Fallen Feathers brilha com intensidade única, é na direção de arte. O jogo é simplesmente deslumbrante. Cores esmaecidas em tons terrosos, névoa constante, detalhes minuciosos nos templos, inscrições em caligrafia chinesa antiga, árvores que balançam como se sussurrassem segredos, tudo contribui para um sentimento de beleza melancólica.
As criaturas são visualmente impactantes. As influências vão de lendas folclóricas chinesas até pesadelos lovecraftianos, e o resultado é um bestiário que raramente se repete em design ou comportamento. Muitos inimigos causam mais inquietação estética do que medo direto, mas isso é parte da proposta do jogo: provocar desconforto existencial mais do que sustos baratos.
A trilha sonora é minimalista e poderosa. Instrumentos tradicionais chineses são misturados com sons eletrônicos distorcidos e ressonâncias leves. As músicas mudam conforme a “pureza espiritual” da área em que se está, algo que afeta não só a ambientação, mas a própria progressão do jogo. A sonoplastia também é impressionante, com efeitos de passos em madeira podre, sussurros ao longe e o som cortante do vento entre as penas.

Exploração e Mundo Interconectado
WUCHANG tem um mundo semiaberto no estilo Metroidvania. Áreas interconectadas, segredos escondidos e atalhos que recompensam a exploração cuidadosa. O mapa é grande e denso, dividido entre províncias reais da China e zonas sobrenaturais que desafiam a lógica. Há cidades abandonadas que guardam bibliotecas soterradas, cavernas vivas que se fecham atrás de você, e jardins suspensos entre o real e o sonho.
A verticalidade é usada com maestria. Subir em telhados, descer por cavernas de raízes e atravessar ruínas afundadas exige não apenas atenção, mas intuição. A exploração é recompensada com fragmentos de memória, relíquias de personagens esquecidos e vislumbres do passado.
A presença de NPCs e missões secundárias acrescenta profundidade à jornada. Muitos desses personagens possuem histórias trágicas, e suas missões se cruzam em momentos inesperados. Suas escolhas impactam o final do jogo, que conta com múltiplas conclusões baseadas no equilíbrio entre corrupção e iluminação espiritual.
Problemas Técnicos e Balanceamento
Apesar de sua beleza e ambição, WUCHANG: Fallen Feathers não escapa de problemas técnicos. Há quedas de desempenho em algumas áreas, especialmente nas regiões mais abertas e com partículas em excesso. Em certas máquinas, bugs de colisão e hitboxs inconsistentes em alguns inimigos foram relatados, embora os desenvolvedores estejam ativos em corrigir essas falhas com atualizações regulares.
O balanceamento de dificuldade também apresenta altos e baixos. Alguns inimigos comuns são mais difíceis do que certos chefes, e certas builds estão muito mais poderosas do que outras. Apesar disso, o jogo nunca se impossibilita, e há um sistema opcional de assistência espiritual que pode ajudar jogadores menos experientes uma forma inteligente de inclusão sem comprometer o desafio central.

Conclusão:
WUCHANG: Fallen Feathers é algo raro nos games por ser um Soulslike independente com altíssimo padrão técnico e artístico e apresentar ao mundo ocidental uma nova perspectiva narrativa e estética. Seu uso da mitologia chinesa, filosofia oriental e horror sobrenatural oferece uma experiência singular ao mesmo tempo, reflexiva e brutal, delicada e grotesca.
O combate é afiado, a protagonista é misteriosa e empática, e o mundo é um labirinto de beleza sombria e dor ancestral. Sim, o jogo possui falhas técnicas e momentos de desequilíbrio, mas elas são superadas pela paixão evidente que sustenta o projeto.
— Comentarios 0
Se el primero en comentar