Alerta de Spoilers
AVISO DE SPOILERS: É impossível adereçar o tema deste artigo sem comentar do momento mais marcante no enredo de Final Fantasy VII e seu impacto narrativo na obra original e no Remake. Logo, este artigo contém spoilers de Final Fantasy VII, Crisis Core, Final Fantasy VII Remake e potenciais spoilers de Final Fantasy VII Rebirth, além de comentários sobre o fim de Star Wars: O Império Contra Ataca.
Este artigo foi escrito antes do vazamento dos troféus do jogo em 3 de fevereiro, cujos nomes revelam um ponto crucial da trama. Caso queira manter uma experiência fresca no lançamento de FFVII Rebirth, recomendo evitar informações sobre eles.
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O Primeiro Luto
Essa história começa em 1998, ou 1999.
Uma criança de cinco ou seis anos compartilhava o recém-adquirido PlayStation da família com seu irmão, dez anos mais velho. Um dia, este irmão, apaixonado por RPGs, levou para casa um recente jogo do qual todos falavam sobre quando se tratava deste gênero para o console: Final Fantasy VII.
Como essa não era sua língua materna, o conhecimento de inglês dessa criança era quase nulo. Porém, ele gostava muito de assistir ao jogo, tanto que passou a ceder até suas horas ao irmão para acompanhar seu progresso por mais tempo. Para ele, aquilo não era muito diferente de assistir um anime, um do qual ele não entendia o que estava escrito e seu irmão precisava explicar os principais acontecimentos da maneira mais palatável possível.
Eles manteriam essa dinâmica por meses, de cidade em cidade, desafio após desafio, até um momento do qual nenhum dos dois esperava: Sephiroth vindo dos céus com sua espada empunhada, o corpo de Aerith caindo lentamente no chão enquanto uma canção melancólica tocava, Cloud segurando seu corpo e levando-o até o lago para deixá-la lá para sempre, a maneira como seu irmão encarou a tela, largou o controle e desligou o console em silêncio - a criança não precisou de explicações, ela entendeu.
Ela entendeu e se sentiu triste, Aerith era sua personagem favorita além do Cloud (afinal, cabelo espetado, espada gigante, toda a estética dele gritava anime), e ver seu personagem favorito “enterrar” outra foi a sua primeira experiência de luto.
Passaram-se mais de duas décadas, esse irmão agora tem 40 anos e nem vivemos mais no mesmo país. De todas as coisas que poderíamos discutir nas festas de fim de ano, conversamos sobre Final Fantasy VII Rebirth e como seria encararmos este momento em alta definição.
Um jogo deixou esse impacto permanente em nossas vidas. Mesmo após duas décadas e meia, vivenciar essa jornada de novo traz um misto de empolgação de nos reunirmos com Cloud, Aerith e seus companheiros, acompanhado do receio de reviver uma das cenas mais marcantes da nossa juventude.
Final Fantasy VII é sobre a aprendizagem no luto
Não é novidade que Final Fantasy VII é o jogo single player mais aclamado da série pelos fãs e crítica e seu marco narrativo ecoou por gerações. Entre a sua abordagem dos receios em torno da evolução tecnológica e nuclear, o impacto de mega corporações na estrutura social e no meio ambiente, e a busca por identidade como cerne do desenvolvimento de seus personagens, um tema é o mais recorrente quando comentamos sobre o seu legado na indústria e na cultura popular: Luto.
FFVII é um jogo sobre luto e trauma, todos os personagens jogáveis o vivem de alguma maneira: seja pela sua família assassinada por um espadachim com complexo de deus, sua cidade destruída e sua cultura sufocada pela ganância corporativa, o pesadelo da incapacidade de salvar a pessoa que você mais amava das atrocidades de um cientista louco ou, pior, ser a última sobrevivente da sua raça - esses traumas os mudaram para sempre e são refletidos em suas personalidades.
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Faz sentido. Luto é um árduo processo de aceitarmos condições das quais não queremos e continuarmos vivendo apesar delas, é sobre manter a memória do outro viva quando essa pessoa não está mais aqui, sobre essa mortalidade que toma de nós coisas que amamos enquanto nos conscientiza de como nosso tempo também é finito - ele é um dos sentimentos mais pesados na vida e muda, para sempre, a nós mesmos e a maneira como percebemos a realidade.
FFVII aborda o estranho processo de aprendizagem e amadurecimento amargo em torno do luto na busca por uma resposta confortante em quem nos tornamos após o choque e o que nos resta após a perda. Nele, esse consolo vem de um conceito lógico e abstrato no que há além da morte: a Lifestream, de onde vem tudo o que nasce e para onde tudo o que morre vai, onde todas as almas se conectam, a essência e força vital do Planeta em que habitamos.
Dessa maneira, ele providencia em seu enredo o conforto e amadurecimento ao interlocutor sobre um dos momentos mais difíceis das nossas vidas. Ele é um abraço desolado, vindo de alguém do qual, assim como você, também já perdeu alguém importante. Sua história, do começo ao fim, é uma narrativa sobre a vida em escopo coletivo e abstrato, e as consequências da morte e do luto no âmbito pessoal.
Você deve estar se perguntando por que estou me prolongando em abordar luto e sobre Final Fantasy VII na minha infância. Conforme nos aproximamos do segundo episódio da série do remake, Final Fantasy VII Rebirth, mais acredito que ele será o jogo mais comovente de uma geração inteira.
FFVII Remake e o Presságio
Final Fantasy VII Remake e sua trama episódica é uma das narrativas mais gananciosas dos últimos tempos, a qual não seria possível experimentar se não fossem os quase trinta anos que o separam do jogo original - ele faz um trabalho excelente em empolgar quem não conhece FFVII enquanto traz elementos suficientes para torná-lo único e especial para os fãs de longa data.
Um desses elementos gira em torno de Aerith e do seu destino. É evidente como ela e Sephiroth são os únicos personagens com conhecimento dos eventos por trás do primeiro jogo, e os diálogos de ambos com Cloud são um alerta constante de que aquela não é a mesma história por meio de frases, atitudes e até flashforwards dos quais se conectam com os dois pontos centrais na trama do jogo de 1997: o fim do primeiro disco e a verdadeira identidade do protagonista.
O presságio começa quando Cloud encontra Sephiroth no segundo capítulo. Suas frases soam dúbias entre se elas se referem a Nibelheim, ou aos eventos que deveriam ocorrer no futuro. Quando ele diz, “O arrepio da carne dela se rendendo à minha lâmina”, é sobre a mãe de Cloud, mas para quem jogou FFVII, é impossível não lembrar de Aerith.
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A dubiedade dos eventos fica mais evidente quando os olhos de Cloud e Aerith se encontram pela primeira vez, onde o tempo congela quando o vilão toca em seu ombro só para dizer “Você não pode salvar ninguém” . Ao Cloud retomar o controle de si, sua conversa com Aerith dá outro soco no estômago quando ela, ao oferecer uma flor, comenta que elas costumavam ser dadas por amantes quando eles se reuniam - uma referência para outro ponto-chave da história original.
Em outro momento, na igreja do Setor 5, Cloud tem um flashforward do destino de Aerith, e no campo de flores antes do seu resgate, ela segura as mãos na mesma posição do momento de sua morte e suas palavras soam como a despedida que ela não pôde ter na obra original, onde expressa gratidão pelo tempo em que esteve com o protagonista, mas reconhece que todos morrem um dia e, por isso, devem aproveitar o tempo que lhes restam.
O Remake remete ao momento mais marcante de FFVII o tempo inteiro de maneira engenhosa, em uma linguagem clara para quem o vivenciou, mas imperceptível para os jogadores de primeira viagem. É natural usar tanto esse dispositivo, afinal, destino é seu tema principal, e a culminação dos eventos do último arco embarca no conceito de abdicar de suas amarras para seguir em uma jornada desconhecida - outra mensagem dúbia, de alívio e incerteza.
A incerteza sobre o futuro dos personagens é um conceito-chave na publicidade de Final Fantasy VII Rebirth na frase “O mundo será salvo, mas e você?”. O conceito de linhas temporais onde Zack está vivo e como tanto Aerith quanto Sephiroth parecem seres onipresentes visando manipular os eventos a seu favor - um tema já conhecido na franquia e utilizado em outros títulos, como o arco de Hydaelyn e Zodiark em Final Fantasy XIV e a série Dissidia - já são evidentes a partir dos trailers.
O Efeito Crisis Core
Não é a primeira vez que os fãs de FFVII ficarão apreensivos durante um jogo inteiro.
Crisis Core é considerado um dos títulos mais tristes e com o desfecho mais marcante da franquia. Sua história aborda os eventos ocorridos antes de Final Fantasy VII, logo, o destino do protagonista é bem conhecido, mas não impede os jogadores de sentirem empatia e tornarem de Zack Fair é um dos personagens mais amados pela comunidade.
Dirigido por Hajime Tabata (Final Fantasy XV), Crisis Core se destaca ao pegar um personagem cuja aparição no jogo original se baseava em poucas cenas de flashback e torná-lo envolvente ao simbolizar tudo o que um herói poderia ser através da sua relação com outras figuras já bem conhecidas: Cloud, Aerith, Sephiroth, Tseng e até Yuffie, além de Angeal, seu mentor e figura exemplar.
Acompanhar a história de Zack é como ler um livro do qual você, acidentalmente, começou pelo último capítulo, ou ir a uma sessão de cinema pela segunda vez porque só conseguiu chegar nos quinze minutos finais na sessão anterior. Você já sabe o desfecho, mas ainda tem páginas ou horas inteiras da obra para acompanhar e se envolver com o personagem central e seus dilemas, paixões, conflitos e, claro, seu luto.
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Conforme a trama progride, mais o interlocutor se apega ao herói e mais torturante se torna o conhecimento dos eventos a seguir. O "spoiler do fim" pode, muitas vezes, desencorajar pessoas a consumirem um conteúdo, mas nesse caso, ele motiva a conhecer sua história até o momento onde reconhecemos que ela está prestes a acabar - a empolgação de progredir e saber os mínimos detalhes dá lugar ao receio de terminá-la e testemunhar a morte de um protagonista amável.
Zack causou esse conflito, o frio na barriga e arrepio de quando, no Remake, reproduzem a cena antecedente ao seu último confronto, sequência por sequência, está registrado no rosto de qualquer fã, e a surpresa de vê-lo vivo no fim do Remake e na DLC Intergrade foi recebido com incredulidade, mas também com o alívio de ter mais tempo e novas aventuras com ele.
FFVII Remake e Rebirth Aprofundam os Vínculos
Final Fantasy VII Rebirth é a continuação da Jornada Desconhecida iniciada no momento em que Cloud e os outros rompem com as barreiras do Destino. A partir daquele ponto, o desenrolar da trama está livre das amarras do título original, enquanto as regiões e cidades são as mesmas de 1997, com uma linha temporal onde Zack está vivo e outra onde Aerith segue rumo ao momento que antecede a sua morte.
Na nova recontagem da história, os vínculos em torno dos personagens são ainda mais importantes: O Remake fez Biggs, Wedge e Jessie crescerem bastante ao ganharem mais tempo de tela, e a destruição do Setor 7 foi marcante por conta do senso de união e comunidade nas favelas abaixo dela.
Afinal, o Setor 7 não era mais só uma região que passávamos em torno de 20 minutos para nunca mais a voltar: havia personagens palpáveis ali, da família do Johnny até Marle, os gatinhos do Wedge, as crianças no parquinho, o cara irritante da loja itens, os comentários quando andávamos pelas ruas, e uma dúzia de pessoas das quais Cloud ajudou durante seu tempo ali.
Em Rebirth, é provável que esse tema sobre vínculos saia parcialmente da estrutura social e foque nas relações interpessoais entre o grupo em sua aventura e momentos onde eles se expressam sobre seus dilemas, como Barret ao chegar a Corel e Red XIII em Cosmo Canyon, ou a solidão de Aerith como a última dos Cetra e o medo de Tifa em confrontar Cloud com a verdade em Nibelheim, ou até com as dúvidas morais do controlador do Cait Sith.
Esses dilemas e a execução deles tornará dos heróis e heroínas do jogo ainda mais palpáveis, mais dignos de empatia e compreensão. A cena da morte de Jessie no Remake teve um impacto gigantesco, pois agora a conhecíamos a ponto de desenvolver um vínculo - em Rebirth, nós já temos esses vínculos e eles serão reforçados e reestruturados tanto entre eles quanto para os jogadores.
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A Jornada Desconhecida e as Consequências
O fim do primeiro disco de Final Fantasy VII é uma das cenas mais melancólicas da história dos games, e não há meios de torná-lo menos comovente ou trágico: não importa a composição da sua equipe, eles vão lamentar a morte de Aerith, Cloud vai carregá-la e deixá-la no lago, e a história nunca mais será a mesma.
Se este for o seu destino em Rebirth, sua execução será ainda mais dramática. Personagens agora possuem expressões faciais e vozes, o corpo que cai não é mais um monte de polígonos e a vida que se esvai pode se expressar através de seus olhos. A música, o confronto final, a repercussão - tudo deixará um sabor amargo e deprimente enquanto aguardamos o terceiro e último capítulo da trilogia.
Ter Zack e Aerith enfrentando o dilema do destino incerto é um ponto central do novo jogo. Ambos são cativantes e fáceis de se identificar ou admirar, e ambos sofreram mortes trágicas e dolorosas de assistir na linha de tempo original. Qualquer sinal de perigo iminente para eles será recebido pela maioria com receio e pode tornar da experiência de Rebirth muito similar com a de Crisis Core.
No entanto, a fase de aceitação do luto é o tema central da compilação de FFVII. Advent Children e Dirge of Cerberus abordam os problemas em não lidar bem com esse sentimento e se prender à culpa. Caso ambos terminem o segundo capítulo com vida, algo será tomado de nós, outros personagens podem morrer, ou podem até não existirem mais no terceiro jogo.
Desprover uma geração inteira do evento mais famoso da geração do Play Station 1 em alta definição soa quase criminoso, por mais devastador que ele seja. Seria necessário repor com alguma coisa tão impactante quanto, ou até mais, e nem a morte de Cloud, aos moldes de Chrono Trigger, poderia ser tão chocante - logo, é muito provável que, sim, veremos Aerith morrer em Rebirth como vimos no jogo original. Talvez com consequências muito maiores.
Essa teoria se reforça quando lembramos que Yoshinori Kitase, produtor de FFVII Rebirth, disse em entrevista para a Games Radar que a equipe de desenvolvimento buscou inspiração no segundo episódio da trilogia original de Star Wars, O Império Contra-Ataca, e como o segundo capítulo serve para “aprofundar os personagens, suas relações e adicionar grandes reviravoltas e aspectos inesperados”.
Este episódio, vale lembrar, possui um final amargo para dar espaço aos eventos do terceiro filme, O Retorno de Jedi: Han Solo é capturado, Luke descobre a identidade do seu pai em uma das reviravoltas mais famosas do cinema, e a Aliança Rebelde escapa por pouco do Império, mas ele ainda busca transmitir a mensagem de que não devemos desistir da esperança mesmo nas situações mais adversas.
Somada à recente entrevista de Naoki Hamaguchi e suas expectativas de reações com o fim de Rebirth, é evidente o choque que nos aguarda no último capítulo e a quebra da ilusão com expectativas de um final feliz - se acompanhar a jornada de Zack foi conflitante e partiu nosso coração, acompanhar a de Aerith em 29 de fevereiro pode nos estilhaçar e marcar a geração atual de consoles da mesma maneira que nos marcou em 1997.
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Conclusão
Aos seis anos, Final Fantasy VII foi a minha primeira experiência com a franquia, e ver meu irmão largar o controle e desligar o console após o fim do primeiro disco foi um evento duradouro em nossas vidas.
Quando terminei FFVII Remake, em 2020, foi minha vez de largar o controle com a mensagem “A Jornada Desconhecida Continuará”, mas para bater palmas quando os créditos começaram. Seu desfecho pareceu épico, o fim do primeiro capítulo de uma aventura inesquecível com personagens e mundo que conheço e me conecto desde a minha infância.
Final Fantasy VII Rebirth é um dos jogos mais aguardados para este ano, é bom que ele saia tão cedo neste ano, pois abre espaço para aproveitarmos as diversas outras obras planejadas para os próximos meses após o choque. Não tenho dúvidas do quanto vou aproveitar cada detalhe do seu vasto mundo e suas missões secundárias enquanto, inevitavelmente, perceberei seus erros e acertos.
Mas também tenho certeza de que a jornada desconhecida será comovente e seu desfecho pode, assim como aconteceu com meu irmão há 25 anos, me fazer largar o controle para refletir sobre a vida e a morte.
Obrigado pela leitura!
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