Não é novidade que as mídias sociais podem ser barulhentas e, muitas vezes, apresentar uma cacofonia de ideias e opiniões que se perdem em respostas prontas ou, muitas vezes, ofensivas e carentes de argumentos concisos.
No universo dos games, esses eventos são tão frequentes quanto em outros temas de entretenimento audiovisual como o cinema e possuem algumas características inerentes da nossa cultura moderna: a de buscar qualquer evidência anedótica para reforçar argumentos e/ou para refutar contra-argumentos que se opõem às suas crenças e linhas de raciocínio.
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Nossa Ágora moderna falhou e continuará falhando: não estávamos prontos para termos tantas vozes, o debate enfraquece quando precisamos resumir tudo ou comportar a mensagem para manter o público o seguindo até o final ou quando nossa principal preocupação é ser aceito pelos algoritmos. Tudo se torna X ou Y, tudo é bem ou mal, os pensamentos deixam de abordar a pluralidade do coletivo para focar naquela parcela de pessoas com quem você quer se comunicar e, de preferência, ganhar reconhecimento e engajamento.
Consequentemente, começamos a debater assuntos frequentemente respondidos com um “porque sim” ou um “por que não?” - e o mais recente deles gira em torno de Yasuke um dos personagens jogáveis do novo Assassin’s Creed Shadows, revelado na última quarta-feira (15).
Enquanto uma parcela vocal pode discordar, ter Yasuke como um protagonista no novo Assassin’s Creed é a melhor escolha que a Ubisoft podia fazer para um título ambientado no Japão feudal, seja do ponto de vista mercadológico visando o marketing em torno da controvérsia que os discursos nas redes criaram, no caráter narrativo e histórico da série e até na qualidade de experiência para o jogador, ter um Samurai negro como um dos personagens jogáveis faz todo o sentido.
O lembrete rápido: Assassin’s Creed é, no fim, uma ficção
Vamos direto ao ponto: Assassin’s Creed é uma obra de ficção que, em suas raízes, utiliza de certos eventos, épocas e alguns personagens reais para contar sua história e desenrolar seu enredo maior - um sobre uma guerra milenar entre Assassinos e Templários e o domínio desses sob as Peças do Éden, artefatos deixados por uma raça ancestral, todos munidos de poderes sobrenaturais como controlar a humanidade.
Desde Origins, a série ganhou um aspecto mais mitológico, uma mudança de narrativa que se encaixava melhor com os aspectos de mundo aberto que a Ubisoft experimentou com três dos seus títulos principais mais recentes. E ainda assim, nem os primeiros jogos da série tinham completa fidelidade com os eventos e tecnologias das eras representadas - o exemplo mais simbólico é o tanque de guerra funcional em uma das missões AC Brotherhood cuja historia se passava entre 1499 e 1507 enquanto, na realidade, o primeiro tanque de guerra só foi criado em 1915.
Ou seja, enquanto alguns conceitos dos jogos são, de fato, inspirados em eventos reais, muita da narrativa da série sempre foi fictícia e uma das maiores críticas existentes sobre Assassin’s Creed nos últimos anos foi a falta de fidelidade com eventos mais “realistas”, pois apesar de representar a forte crença em deuses e religiões nas suas épocas, não há nada “real” em enfrentar deuses e lendas mitológicas como chefes - esses elementos sempre ficaram relegados ao enredo maior da série com os Isu.
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Apesar desses conflitos entre realidade e fantasia presentes em seus jogos, no entanto, este não deveria ser um debate quando falamos de Yasuke porque ele foi bem real.
Afinal, quem foi Yasuke?
Yasuke foi o primeiro samurai negro da história do Japão e serviu como parte da guarda de Oda Nabunaga, um senhor feudal que havia unificado metade do Japão durante a era Sengoku.
Segundo historiadores, pouco se sabe sobre seu nome original, mas acredita-se que Yasuke nasceu em Moçambique, Etiópia ou Nigéria e foi, possivelmente, traficado como um escravo, mas era um homem livre quando se tornou um mercenário que servia como guarda-costas de Alessandro Valignano, um missionário italiano que planejava viajar da Índia para o Japão durante a guerra civil no país, ocasionada pela queda do shogunato de Ashikaga.
Ambos chegaram em 1579 e se encontrariam com Oda Nabunaga em 1581. Oda ficou fascinado pela estatura física, força, disciplina e a cor da pele do guarda-costas de Alessandro, da qual acreditava tratar-se de tinta pintando seu corpo.
Quando descobriu que esta, na verdade, era sua pele, Nabunaga deu uma festa de boas-vindas para Yasuke, que pode ter recebido treinamento sob sua tutela para entrar em sua guarda pessoal, com 30 a 50 soldados, onde ele era o único estrangeiro.
Sob o comando de Nabunaga, Yasuke participou dos últimos passos processo de unificação do senhor feudal, que tomou um rumo amargo quando ele foi traído por um de seus generais, Akechi Mitsuhide, em 1582, que os cercaram em Kioto com 13.000 soldados.
Encurralado, Nabunaga cometeu seppoku, o ato de cortar o próprio abdômen para morrer pelas suas próprias mãos, mantendo sua honra. Yasuke ficou responsável por levar os corpos de Oda e de seu amante, Mori Ranmaru, para longe de Mitsuhide e, assim, evitar que ele legitimasse seu poder sobre o exército.
Pouco se sabe sobre o paradeiro de Yasuke após esses eventos. Os últimos registros sobre ele apontam sua presença em uma missão jesuíta feita pelo exército de Akechi Mitsuhide, que foi morto algumas semanas depois por Toyotomi Hideoshi na Batalha de Yamazaki. Hideoshi se tornou o próximo grande unificador do país em 1590.
Traição e Liberdade como temas recorrentes
E agora que estamos devidamente apresentados ao protagonista, é impossível não perceber como diversos elementos dele se encaixam com a narrativa geral de Assassin’s Creed e como sua história conhecida e os eventos que as sucedem são, naturalmente, alguns dos elementos cruciais que a narrativa da série busca abordar em seus jogos.
O mais marcante deles é a traição. Desde Assassin’s Creed II e o fatídico momento em que Ezio Auditore vê sua família ser executada, este tema apareceu em diversos jogos da série de alguma maneira, e podemos especular que a história de Yasuke eventualmente o levará até a emboscada de Akechi Mitsuhide e a morte de Oda Nabunaga.
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Apesar de Oda ser considerado um líder impiedoso e isso ser demonstrado sob a ótica da outra protagonista do jogo, Naoe, não podemos negligenciar o conceito de lealdade existente no código dos Samurai e o que ele significa para Yasuke, um possível ex-escravo que ascendeu à guarda do homem mais importante do Japão, que o escolheu pessoalmente - Seja por gratidão ou senso de dever, é provável que veremos o protagonista ter algum apreço pelo seu lorde, e consequentemente, buscar a vingança pela sua morte nas mãos de Akechi, um possível agente Templário.
Esse evento se encaixa, também, com outro ponto crucial das histórias de Assassin’s Creed: Liberdade. Diversas tramas da franquia já giraram em torno da luta de um grupo contra outro, em especial o conflito entre opressores e oprimidos - acima de tudo, um ato de heroísmo com o qual muitos se familiarizam e consideram a maneira certa de agir perante injustiças.
Mas liberdade nem sempre é apenas sobre os conflitos externos. O diálogo de Yasuke com Nate durante o trailer faz parecer que ambos buscam uma alternativa para mudar o rumo do Japão, uma que não envolva o mesmo derramamento de sangue de inocentes que Oda seguiu - a libertação de uma filosofia, de um conceito sobre como se governa.
Sabemos pela história que os atos de expansão, violência e conquista de territórios do governo japonês não se encerraram com Nobunaga: Hideoshi, por exemplo, fez avanços na economia do país, mas construiu fortificações para proteger seu governo e possuía planos para conquistar territórios de outros países, com duas tentativas de invasões contra a Coreia.
Nos resta questionar que tipo de caminho Yasuke pode tomar. O trailer indica uma lealdade colocada em cheque em prol de uma realidade melhor para a nação onde ganância, poder e vingança não tenham controle sobre suas vidas - mas os temas e a maneira como eles se conectam com o personagem o colocam em um espaço importante quando falamos de protagonistas de Assassin’s Creed, e o diferencia na disputa com outro grande nome dos jogos de console.
Para não viver nas Sombras de um Fantasma
Desde 2020, um Assassin’s Creed ambientado no Japão viria, naturalmente, com um grande obstáculo na hora de deixar sua marca na indústria: Ghost of Tsushima, considerado até hoje como um dos jogos mais bonitos da geração, possui uma jogabilidade de Stealth que colocam ambos em papéis muito parecidos no mercado - e é muito difícil competir com estética da obra da Sucker Punch.
Tudo em Ghost of Tsushima é incrível de alguma maneira: o visual dos mapas, sua exploração de mundo aberto, o combate, a liberdade em escolher entre combate corpo-a-corpo ou os meios mais furtivos e a quantidade de recursos nas mãos do jogador, além da capacidade de customizar suas roupas conforme sua preferência de jogabilidade, colocam-no em um espaço muito privilegiado nos jogos de mundo aberto.
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AC Shadows aparenta apostar em elementos de jogabilidade distintos como o recém-revelado sistema de estações e clima, que mudam o comportamento dos guardas, e a capacidade de usar as sombras ao favor do jogador para executar movimentos de Stealth com Naoe, ou o combate mais pesado e direto com Yasuke - separando, em dois personagens, características que precisamos planejar detalhadamente em Jin Sakai.
Em termos narrativos e de imersão, Naoe parece oferecer aquela experiência clássica da série de andar por aí com uma personagem furtiva, com lâminas ocultas em suas luvas, que passa desapercebida por guardas e outros inimigos - uma experiência mais próxima de Brotherhood do que de Odyssey.
Yasuke, por outro lado, é uma figura que chama a atenção e deve ter maior proximidade com títulos mais recentes da franquia. Ele é um samurai negro, é óbvio que ele chama (ou deveria chamar) a atenção, e a história da trama pode estar muito mais intrincada na sua jornada narrativa e sua resolução sobre os eventos enquanto parte do exército de Nabunaga justamente por sua distinção com o resto do povo japonês, deixando-o, inclusive, em um posto importante na ótica do interlocutor.
Jogadores gostam de se sentirem únicos
O motivo pelo qual Geralt de Rivia, com seus cabelos brancos e olhos amarelos em The Witcher, Cloud Strife, com sua espada gigante e olhos infundidos de Mako em Final Fantasy VII ou até o personagem jogável de Skyrim, cuja aparência é customizável, mas não muda que ele é o Dragonborn, fazem tanto sucesso é porque jogadores tendem a gostar de sentir que são o centro da história, uma figura distinta dos demais tanto em traços físicos quanto em seu papel no desenrolar da trama.
Até Ghost of Tsushima, cuja ambientação é bem similar, teve essa característica ao colocar Jin como um dos poucos samurais sobreviventes da Ilha - e posteriormente, colocando-o no papel do Fantasma quando samurais se tornam mais comuns ao redor do mapa e das cidades que o protagonista visita, deixando-o, assim, com um caráter de "único" para o universo do jogo.
Em AC Shadows, Yasuke é esta figura distinta: sua cor de pele, penteado de cabelo e estatura certamente o destacam perante os NPCs e a maioria dos outros personagens e criam uma experiência mais "gameficada" para o jogador ao torná-lo igualmente distinto sob sua ótica e imersão. Se suas origens e traços culturais forem preservados, haverá também distinções em seu comportamento e filosofia, colocando-o no mesmo papel que outros personagens tão aclamados já estiveram e do qual, no fim, podem compensar com uma jornada cativante.
Ter um herói negro, único e inspirado em uma pessoa real agrega na cultura dos games
Quantos já consideraram os benefícios narrativos de ter Yasuke como um protagonista? Isso vai bem além da representatividade, mas, sim, representatividade importa e quantos de nós já tivemos a experiência de nos inspirarmos nas ações de figuras como Ezio Auditore ou qualquer outro herói branco, ou heroína branca em Assassin’s Creed?
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Quando temos a oportunidade de ter, pela primeira vez, uma figura real como personagem jogável de uma série conhecida pela sua mescla de precedentes históricos e ficção, não existe outro personagem no Japão feudal que faria mais sentido do que Yosuke - e tal qual muitos se inspiraram em outros protagonistas, por que não deixar que jovens e adultos também encontrem essa mesma inspiração com personagens em que eles podem se identificar melhor? Por que nós, aqui do nosso espaço e das nossas vivências, não podemos aprender mais com personagens negros também?
Há poucos meses, escrevi um review de Final Fantasy VII Rebirth, e nele comentei sobre a maneira com qual utilizam da integração da experiência de um videogame com o interlocutor para imergir ele nos sentimentos dos heróis durante a jornada - e um personagem específico onde isso acontece muito e, ao mesmo tempo, bateu fortemente nos corações do público foi com Barret, o único personagem negro da equipe.
Seu desenvolvimento é notório desde o Remake, mas se expande em Rebirth, pois parte dos seus capítulos abordam seus temas pessoais como seus traumas e sua relação de confiança com os outros. O vemos assumir a culpa dos seus erros, refletir sobre eles, reviver suas perdas e amadurecer nesse processo - é dele que saem os aprendizados e as mensagens mais importantes do jogo sobre crescimento no luto, e ver Barret sair do alívio cômico que era em 1997 para o herói mais maduro do Remake em 2024, sem deixar de lado suas características mais leves, o tornaram meu personagem favorito de FFVII.
Então que lições Yasuke pode nos trazer? Que visões do mundo ao nosso redor ou da nossa história podemos ter através da sua ótica e que mensagens o roteiro de Shadows buscará transmitir com ele? O caráter narrativo em ter um personagem real, negro, e dessa magnitude pode trazer incontáveis possibilidades e abrir muitos precedentes para Assassin’s Creed, então por que não escutar e aprender sobre ele? Por que não aprender com ele?
Na ótica mercadológica, Yasuke é excelente
“Novo Assassin’s Creed tem primeira pessoa real como um personagem jogável: um samurai negro” chama a atenção dentro e fora do debate gamer - e faz anos que não temos um jogo da série furando a bolha e alcançando fãs de outras mídias e, também, para aqueles que defendem mais representatividade na ficção.
Yasuke também não é uma figura qualquer e já apareceu em outras mídias, como uma animação de sucesso na Netflix, além de ser admirado pelo público japonês e ter diversas obras de ficção com ele no oriente. As desavenças culturais em torno da sua presença como protagonista de um jogo ambientado no Japão feudal são quase inimagináveis longe das discussões das mídias sociais: para fins práticos, o primeiro samurai negro da história é uma figura icônica da cultura pop e uma da qual, em maioria, as pessoas ficaram e ficarão felizes em ver.
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A “controvérsia” em torno do personagem é bom para a Ubisoft. O marketing positivo em torno do jogo, a divulgação em massa dele e a insignificância dos debates frívolos sobre a etnia de um samurai só geram mais conteúdo e engajamento para Assassin’s Creed em múltiplas plataformas que levará até alguns jogadores que já perderam a fé na série a recuperar um pouco dela e jogar o próximo título, além de encorajar quem nunca deu uma chance para a franquia a experimentar AC Shadows.
Ainda existem muitas sombras para descobrir
Fora das mídias sociais, ainda existem muitas coisas que precisamos saber sobre Assassin’s Creed Shadows antes de considerarmos se vale, ou não, a pena comprá-lo. Faltam trailers de gameplay, mais detalhes sobre a história, vídeos que possam demonstrar sua qualidade visual e narrativa, dentre outros pontos que, naturalmente, fazem parte do trabalho de divulgação de um novo jogo da Ubisoft.
Ainda é muito cedo para tirar conclusões sobre o novo jogo da série, mas podemos ter certeza de que, junto de Naoe, Yasuke certamente deixará uma marca no fandom de Assassin’s Creed e abre novos precedentes para onde a jornada através das eras pode nos levar.
Obrigado pela leitura!
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