Pressionar o botão no “New Game” nos guia até o panorama de uma Torre Eiffel distorcida. A canção de fundo — presumidamente em francês — é calma, suave, com vocais harmônicos com a paisagem do mar e das flores enquanto somos apresentados a um homem maduro, com pouco mais de trinta anos, jogando pedras no mar, como provavelmente faz desde garoto.
Este homem, Gustave, está procrastinando. Ele não quer se despedir, tampouco entregar flores para sua amada antes da sua morte — uma com data marcada naquele fim de tarde. Não por execução — não estamos na França da Revolução — mas por Gommage, o qual o interlocutor permanece alheio ao que se trata até os primeiros vinte minutos de introdução de Clair Obscur: Expedition 33, disponível para PlayStation 5, Xbox Series e PC/Steam.
O Gommage é a força motivadora dos eventos do jogo — trata-se da morte inevitável, o desaparecimento corpóreo que ocorre uma vez por ano quando uma entidade nomeada The Paintress se levanta e pinta um novo número em seu quadro, apagando indiscriminadamente todos os indivíduos que tenham àquela idade.
Não há lógica ou propósito, e o povo de Lumiere não busca justificativas para o ato, ele apenas acontece. A Paintress coloca um novo número, pessoas desaparecem, e o ciclo se repete no ano seguinte. É um evento doloroso, uma última despedida anunciada com data e hora marcadas, mas faz parte, é natural.

Aos poucos, a humanidade presencia sua extinção, e sua única resistência ocorre todo ano quando enviam uma Expedição para o Continente, onde a Paintress habita nos esforços de a impedir. Gustave, antes mesmo de ver sua amada desaparecer diante dos seus olhos, juntou-se à Expedição 33 junto da sua irmã adotiva Maelle — uma jovem que, diferente da maioria dos membros da Expedição, ainda teria muitos anos para viver antes de ser levada pelo Gommage.
Para alguns, como o protagonista, a Expedição é a única salvação possível para Lumiere e a humanidade — chegar até o Monolito onde a Paintress está e eliminá-la é o objetivo. Para outros, se trata apenas da aventura de tolos para uma morte precoce, um meio de acelerar o inevitável. Talvez, até os Expedicionários acreditem nisso: seu lema, afinal, é “A morte vem para todos”.
Tão Belo, Tão Impiedoso
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A demonstração da carnificina simbólica provocada pelas criaturas que habitam aquela terra dita o tom do mundo explorável em Clair Obscur. Para cada mínimo detalhe de surrealismo inspirador e paisagens que soam como poesia visual para os que apreciam direção artística em games, existem também resquícios de expedições anteriores como um lembrete que toda criatura no mapa existe para matar os heróis — e eles estão lá, nos horizontes de um mundo à beira do fim, sozinhos, sem qualquer outro contato humano amigável, para evitar a extinção.

Apesar de todas as raízes de JRPG que Clair Obscur têm, com inspirações notórias de Final Fantasy X e Persona 3 em ambas jogabilidade e temas como luto e morte, há uma familiaridade também com jogos de survival horror aos moldes de Silent Hill — aquele frio na barriga, o desconforto de que o próximo confronto pode não ser fácil, aquele sentimento de olhar uma criatura em meio à neblina e considerar que, talvez, seja bom evitá-lo ao invés de partir para um confronto direto porque você é fraco, ao invés de ele ser forte.
A apreensão constante contrasta com a beleza e calmaria de cada região: existe pouco tempo para respirar e muita gratidão pelos breves momentos em que a aventura permite um resquício de sossego. Até entre os personagens, é notável em alguns diálogos como eles precisam fazer brincadeiras e aproveitar momentos com os outros para deixar o clima mais leve entre si e para o interlocutor, mesmo que a sensação de urgência paire no ar a cada instante fora dos acampamentos e das poucas áreas onde existem criaturas pacíficas com quem interagir.

O Continente pede para ser explorado. A quantidade de segredos que ele, nos moldes tradicionais de um JRPG, possui é ampla e dificilmente será possível checar cada detalhe em poucas horas ou em uma progressão linear visto que algumas regiões podem ter inimigos mais fortes e outras precisam de um desbloqueio específico para ser acessado. Essa exploração recompensa com novas dungeons para descobrir, itens para desbloquear, missões secundárias, ou até minigames — alguns bem frustrantes e outros razoavelmente divertidos.
Revitalizando o Combate em Turnos
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Um dos motivos pelo qual a apreensão é constante também para o jogador envolve o combate. Apesar de ser um título francês e desenvolvido por uma equipe de ex-funcionários da Ubisoft, Clair Obscur tem raízes muito firmes no gênero JRPG nos moldes mais clássicos, com combates feitos em turnos e planejamento estratégico de como sequenciar cada habilidade e personagem para não gastar recursos demais e nem prolongar muito as batalhas.

A maior novidade dele em comparação com outros jogos do gênero é a utilização constante de Quick Time Events durante o combate. Ações especiais dos personagens podem falhar se o jogador não apertar os botões, e os ataques de qualquer inimigo pode ser desviado ou até contra-atacado ao apertar os botões na hora certa — se falhar, os personagens serão severamente punidos com mais dano do que podem sustentar, criando uma bola de neve que força jogadores a acompanharem os movimentos e os sons emitidos pelos adversários para identificar o padrão dos seus ataques e se adaptar a eles para desviar ou bloquear.
Essa inovação é o que torna o combate de Clair Obscur tão engajador. Um dos maiores problemas dos RPGs de turno para as gerações atuais é que a fórmula “apertar botão, ver efeito” não é atraente e carece de senso de urgência em um mundo onde jogos estão cada vez mais imersivos — criar a necessidade de decifrar códigos visuais e sonoros para vencer batalhas mantém o jogador constantemente atento, e acertar precisamente o timing de cada um é recompensador dentro e fora do jogo, com ações extras para o seu turno, ou aquela dose de dopamina que o cérebro produz ao fazer o parry perfeito em um jogo como Dark Souls

Os Soulslike, inclusive, parecem a inspiração para esse sistema de QTE. A sensação de agência e a necessidade de ler movimentos e identificar os padrões remete à responsabilidade que títulos como Bloodborne colocam sob a responsabilidade do jogador, sob a punição de, na dificuldade normal, ser punido com uma derrota rápida se falhar demais ou se recusar a aprender.
Profundidade e Simplicidade contrastam na Construção de Personagens
Um dos grandes problemas de RPGs modernos é como o sistema de customização de personagens pode ir um pouco longe demais, ao ponto de diversos aspectos serem negligenciados pela maioria dos jogadores. Esses permitem ampla variedade de builds, em especial em jogos de mundo aberto, mas ter um foco mais engessado em como construir seus personagens e garantir que a liberdade do jogador de moldá-los seja respeitada sem o tornar excessivamente complexo é um desafio que muitos jogos ainda falham em conseguir.
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Clair Obscur consegue encaixar o seu sistema de combate complexo com camadas de simplicidade. O nivelamento foca em uma distribuição de pontos entre os status do personagem, escolhidos ao comando do jogador.
A customização também passa pelos equipamentos e pela progressão de habilidades. Cada personagem possui três slots de habilidades passivas que também oferecem melhorias de conforme seu nível, além dessas passivas serem aprendidas após algumas vitórias e poderem ser equipadas com outro sistema de pontos e recursos paralelo, fazendo os jogadores equilibrarem-se entre quais equipamentos valem a pena manter pelos buffs e quais devem ser mantidos porque equipar as habilidades sem eles seria muito caro.
Além disso, as habilidades de ataque também são limitadas e customizáveis: cada personagem pode ter até seis ataques, cada um com seu custo de execução e efeito distinto, todas obtidas por meio de uma árvore de habilidades individual cujos pontos para desbloqueio são recebidos ao ganhar níveis.
Encontrar a build certa é um desafio de tentativa e erro, e, portanto, o jogo oferece diversas chances de conseguir itens que resetam ambas as habilidades adquiridas quanto os pontos gastos em atributos, então o peso da escolha de “onde gastar cada ponto” não precisa existir — se acha que um personagem funciona melhor de um jeito específico, basta reiniciar os status e tentar novamente.
O jogo também conta com trajes alternativos para todos os personagens, que vão de roupas mais casuais até trajes de praia e cortes de cabelo. Todos possuem propriedades unicamente cosméticas, sem interferir em qualquer elemento na build dos personagens.
E a História?
Com aproximadamente 25 horas de duração na campanha principal, Clair Obscur oferece uma experiência narrativa recheada de socos no estômago. Apesar da falta de associação e empatia que se pode ter com a maioria dos personagens no início, há algo em cada um deles que os torna relacionáveis com aspectos inerentes à natureza humana e com a complexidade de emoções que o amadurecimento e o luto trazem para o indivíduo.

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Assim como o mundo desolado em que se situa, a trama é impiedosa. Para cada momento onde ela entrega calmaria, ela empurra o interlocutor numa dúzia de tempestades, e enquanto segue alguns muitos tropos previsíveis, ela se recusa a entregar o óbvio mesmo quando a propõe, colocando-nos em uma montanha-russa emocional onde nunca sabemos o que a próxima hora pode entregar.
Estou sendo intencionalmente brando nessa seção. Clair Obscur funciona muito melhor quando não sabemos nada sobre o seu mundo ou seus personagens — a proposta inteira da trama flerta com esse desconhecimento do interlocutor o e quanto ele se propõe a imergir no seu mundo e descobrir seus mistérios por conta própria —, mas garanto que, em termos narrativos, é uma obra que vale a pena apreciar cada segundo e mais de uma vez.
Nem Tudo são Flores
Para cada elogio, entretanto, há um percalço.
A exploração das masmorras, por exemplo, pode ser bem frustrante para alguns jogadores. Poderia ser pela ausência de um mini-mapa para guiá-los, mas um dos maiores problemas de sempre ter acesso a um mini-mapa é perder tempo demais olhando para ele ao invés de para o jogo — e se Clair Obscur tenta reproduzir o feeling dos RPGs mais clássicos, a ausência de um mini-mapa é um charme e não um percalço.
Esse ponto não invalida as ocasionais frustrações na exploração. Algumas regiões possuem diversos caminhos que podem levar até tesouros ou inimigos mais fortes, e é fácil se perder neles quando não se tem uma noção exata de espaço — novamente, não pela ausência de um mini-mapa, mas porque a proximidade da câmera com o personagem limita tanto o escopo de visão em um mundo que já é gloriosamente detalhado ao ponto de, por vezes, carecer de lógica visual.
Existem meios de saber para onde ir via lanternas e sinais coloridos que podemos acompanhar ao redor. No entanto, esses não corrigem a maneira como a câmera é mal posicionada e todo o problema envolvendo se perder porque pegou um caminho e não sabe qual é o caminho de volta seria resolvido se ela fosse um pouco mais distante ao ponto de oferecer mais de campo de visão ao jogador.
Por outro lado, essa mesma “câmera ruim” colabora muito com a atmosfera opressiva do Continente. Há algo claustrofóbico nela, e em masmorras perigosas ou quando os personagens estão com HP baixo, olhar ao redor para não ser pego de surpresa por algum monstro que acabamos por negligenciar enquanto caminhamos é um lembrete constante do que os perigos daquela terra causam.
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O lip sync apresenta problemas em diversas cutscenes. Com um elenco de dubladores que inclui nomes de peso, como Ben Starr (Final Fantasy XVI), Charlie Cox (Demolidor) e Jennifer English (Baldur’s Gate 3), ouvir vozes tão reconhecidas e perceber que as suas falas não encaixam com o movimento dos personagens cria certa frustração.
Cutscenes também apresentaram problemas de estabilidade de frames no PlayStation 5 com mais frequência que o ideal, em especial nas cenas onde o rosto de um personagem se aproximava demais da câmera, ou onde havia movimentações mais bruscas, o que deve ser devidamente adereçado com um patch de pós-lançamento em breve.
Prós e Contras
Prós
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Contras
Nota
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9.0
Vale a Pena Jogar Clair Obscur: Expedition 33?
Para um título novo de um estúdio outrora desconhecido, Clair Obscur: Expedition 33 é assustadoramente familiar. Ele é uma mensagem para os fãs e JRPGs clássicos que sentem falta dos antigos turnos de combate, tanto quanto é um aceno para os fãs de Soulslike e os entusiastas de Survival Horror que queiram um título que os desafie para fora da zona de conforto.
A familiaridade vai além do aspecto jogo. Os personagens possuem dilemas e o jogo apresenta problemas e questões facilmente relacionáveis com a complexidade de viver conforme amadurecemos, e o faz com foco exclusivo no ponto mais importante — a humanidade. Sentir é sobre ser humano, e não saber como lidar com as circunstâncias e ter suas próprias fraquezas também fazem parte da experiência humana.
Clair Obscur é definitivamente um título que recomendo para qualquer fã de RPG, seja ele com combate em turnos ou em tempo real, e para pessoas que desejam uma história e um jogo que saia do convencional e apresente uma trama cheia de vida e inspiração criativa, mesmo que esses sejam refletidos no contraste entre as cores radiantes do ambiente com a morbidez dos corpos petrificados das Expedições anteriores.
Resta a curiosidade sobre como o universo de Clair Obscur pretende se expandir a partir do sucesso assertivo do seu título de estreia. Talvez, seja cedo para dizer que ele tem potencial para ser nomeado como Jogo do Ano, mas até o momento, ele tem todas as qualidades e sinais para ser um forte candidato ao RPG do Ano em 2025.
Obrigado pela leitura!
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